Artigo de opinião do Jornal de Notícias que merece ser lido (estudado) com concentração e, depois, bem meditado, a fim de melhorar a couraça que devemos utilizar como defesa contra as tentações de credulidade.
O vendedor da banha da cobra
José Silva Peneda, Eurodeputado, JN 070120
O vendedor da banha da cobra não é uma personagem de histórias de ficção. O vendedor de banha da cobra existe, evoluiu, continua por aí e é muito hábil e astuto.
Todos sabemos que a banha da cobra não serve para nada mas a convicção que esse vendedor transmite, através duma oratória bem estudada e estruturada, convence muita gente sobre as capacidades infinitas do milagroso medicamento. Impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, treçolho, verrugas, cravos e desmanchos são alguns dos males que a banha da cobra afastava a quem a quisesse comprar.
Ainda tenho no ouvido partes dessa oratória "Não custa nem 20, nem 15, nem dez! Custa apenas cinco, e quem levar dois leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina... e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir o pacote..."
E o povo lá ia comprando e o vendedor da banha da cobra lá se ia governando.
Este era o autêntico vendedor da banha da cobra que até seria capaz, se não de pagar impostos, pelo menos de pagar a licença municipal para utilização do espaço das feiras, onde afirmava que trabalhava honestamente porque não estava ali para enganar ninguém.
Porventura, o vendedor da banha da cobra existe há séculos e, se é seguramente certo que a banha da cobra não cura, também não consta que daí tenha saído algum mal para a saúde pública e para o Mundo.
Se calhar, também por causa da globalização e das mudanças que por todo o lado vêm acontecendo a um ritmo colossal, alguém pode pensar que o vendedor da banha da cobra desapareceu. Ora, isso não é verdade. O que sucedeu foi que o vendedor da banha da cobra sofreu uma transformação e adaptou-se aos novos tempos. Digamos que não desapareceu, antes evoluiu para um estádio mais sofisticado.
Trata-se assim de mais um caso típico onde de uma estratégia assente na base de mão-de--obra barata e pouco qualificada, se passa para outra, onde o conhecimento e a inovação permitem alcançar níveis de competitividade mais elevados e o que é certo é que o nosso vendedor da banha da cobra continua a sua actividade de sempre, mas agora, em vez da banha da cobra, vende outro tipo de ilusões.
Abandonou a linguagem vernácula para passar a utilizar formas mais subtis e sofisticadas de comunicação, muitas graças às novas tecnologias e modernas técnicas de marketing, tudo no sentido de estar mais bem apetrechado para convencer os potenciais compradores das novas ilusões.
Veste agora de forma muito mais elegante e usa um corte de cabelo moderno.
Exibe uma grande autoconfiança que, por vezes, roça a altivez própria dos fracos.
Dá mostra de intransigência perante grupos isolados, prévia e cuidadosamente seleccionados, para mostrar ao mercado que veio para ficar.
Cria expectativas muito tentadoras que, a serem concretizadas, só o serão lá para as calendas.
É capaz de prometer a prosperidade para amanhã, quando a realidade é a dívida crescer dia a dia.
É um verdadeiro mestre a prometer hoje uma coisa para fazer o oposto amanhã, com toda a tranquilidade e impunidade.
Facilmente cria a ilusão de que o mal está a ser fortemente atacado, quando os sintomas se agravam de forma persistente.
Aparenta uma simpatia face aos clientes para, nas costas, desdenhar da sua ingenuidade.
É exímio em levar os clientes a acreditar que vão ganhar o euromilhões.
Perante a descoberta da trapaça feita, não dá sinais de atrapalhação e chega ao ponto de pedir à vítima um pedido de desculpas.
Fala muito de rigor e jura tratar todos por igual mas, às escondidas, faz descontos aos mais poderosos.
Com um passo de mágica, convence muitos clientes que a felicidade se atinge sem qualquer tipo de esforço.
Quando surpreendido por uma observação de um cliente mais lúcido, é notável a forma como atribui sempre a culpa aos fornecedores do passado.
Exibe um poder que não é capaz de exercer porque, no fundo, tem medo de perder os clientes.
Virá o tempo, e mais rapidamente do que se pensa, em que o vendedor da banha da cobra ficará fora do prazo e terá de mudar de vida.
Quanto aos clientes, para já, parecem satisfeitos.
Tal como no tempo da banha da cobra, compram sem pensar e sem precisar. Tal como no tempo da banha da cobra, acham graça e simpatizam com o estilo do vendedor de ilusões. Tal como no tempo da banha da cobra, estão contentes, porque estão iludidos.
Os clientes andam por aí. Até pode ser o povo de um país.
Almirante Gouveia e Melo (I)
Há 1 hora
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