Se Lisboa vai a votos, tenho um teste para o vencedor: que árvore é aquela que floresce ao lado da Igreja da Memória?
Há menos de dez anos, começava a guerra no Kosovo, passei pela capital albanesa, a caminho da fronteira. Ver Tirana serviu-me para a melhor definição que fiz de uma cidade: “Tirana? É assim: qualquer albanês que desembarca em Bissau, exclama, extasiado: ‘Uau! Que luxo!’” Tirana era a praça central com colunatas estalinistas no tribunal. Os edifícios oficiais eram pomposos e pintados nas frontarias. Entrando por qualquer rua, a um metro, metro e meio, das esquinas, as paredes deixavam de estar pintadas. E, por vezes, eram só blocos de cimento, sem reboco.
Li, ontem, no semanário ‘Sol’, que Tirana tem outra cara: explode de cores.
Edi Rama, o presidente da Câmara eleito em 2000, começou por encomendar latas de tinta. Juntou-lhes amor pela cidade e bom gosto (Rama é um pintor que vivia no exílio, em Paris, no tempo da ditadura comunista). De demão em demão, foi eleito por uma associação britânica como melhor autarca mundial e a criteriosa revista americana ‘New Yorker’ dedicou-lhe uma reportagem.
A minha cidade, Lisboa, está morta como Tirana há dez anos. E, há dez anos, a minha cidade estava viva. Lisboa tinha o melhor presidente da Câmara que jamais teve, João Soares. Estou tão à vontade para o dizer quanto me opus, em artigos violentos, a um dos seus derradeiros projectos, o elevador para o Castelo. Por outro lado, tenho várias medidas para o gabar: o fim das barracas na cidade (promessa eleitoral cumprida), o Bairro Alto (que foi um lugar alto com reputação europeia para se tornar, hoje, numa cloaca) Mas tenho, sobretudo, uma razão: uma cidade tem de ser amada pelos seus autarcas e uma cidade como Lisboa tem de ser amada perdidamente. O último candidato por Lisboa capaz de ter os olhos a luzir por ela foi João Soares.
Lisboa não lhe era um trampolim, nem para Belém, nem para São Bento, nem para uma qualquer embaixada. Ele foi por Lisboa pela maior das razões, Lisboa. Dele, eu teria resposta, aposto, se lhe perguntasse: “Que árvore é aquela que floresce pelo Inverno, ao lado da Igreja da Memória?” Recordo-o, agora, quando Lisboa procura novo líder e, tendo ele se chegado à frente (João Soares não tem vergonha da sua ambição), há quem o sacuda como se de um intrometido se tratasse. Acusado durante anos de ser um menino do papá – ao que sempre respondeu dizendo todo o orgulho que tinha de ser filho de quem era – acabou, em vez de beneficiado pela filiação, por ser prejudicado.
Mário Soares é, hoje, um pestífero, em vez de ajudar, enterra. Grandes portugueses são Salazar e Cunhal. Que importa que a um, Salazar, Soares tenha derrotado, impondo um Portugal europeu? Que importa que a outro, Cunhal, Soares tenha derrotado, impondo um Portugal europeu? Mário Soares, a quem, sem sermos obrigados, apertávamos as bochechas com frenesim, tem de ser esquecido de todo. Sermos lacaios com autoritários, vá lá, sermos lacaios com democratas só passa varrendo a memória.
Essas razões psiquiátricas tiveram como vantagem termo-nos livrado de um Mário Soares que pensa cada vez pior sobre questões essenciais: como tratar a América e o terrorismo árabe, por exemplo. Lamento é que haja consequências colaterais para a minha cidade.
Ferreira Fernandes
NOTA: Este artigo de opinião do Correio da Manhã de hoje, 28, é um exemplo a admirar e a seguir. É uma análise apartidária, fruto de grande amor pela cidade, apontando aquilo que considera bom e aquilo que considera mau, sem olhar aos autores. E faz um diagnóstico perspicaz da degradação da cidade, por carência de amor da parte dos autarcas que a usam como trampolim para as suas ambições pessoais, ou quem sabe, por ausência de ambições e mesmo de capacidade.
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