quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Tempo a que falta amor

Transcrevo este texto de Eugénio de Andrade, in 'Os Afluentes do Silêncio', que me foi enviado por alguém que admira muito o Sempre Jovens o qual considera em sintonia com as palavras do escritor que ajudam a explicar alguns dos pequenos atritos devidos a particularidades fragmentárias que são classificadas como ofensas pessoais quando não passam de situações tradicionais, linguísticas e abrangentes do Homem como criatura planetária. Será aleivosia uma pessoa considerar-se como centro do mundo e alvo de qualquer apreciação impessoal, geral e universal de que não goste.

Fragmento do Homem

Que tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor. Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi transformando o homem num objecto com preço marcado.

Estrangeiro a si próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua coragem, em arrancar máscaras e máscaras.

E poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se esbarrondam por alheias à «sabedoria» do corpo, em que o privilégio de uns poucos é utilizado implacavelmente para transformar o indivíduo em «cadáver adiado que procria», como poderia a arte deixar de reflectir uma tal situação, se cada palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida?

Desamparado até à medula, afogado nas águas difíceis da sua contradição, morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste, mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica que preocupada com uma problemática moral, que não sabe como fundar e instituir, pois nenhuma fará autoridade se não tiver em conta a totalidade do ser; nenhuma, em que espírito e vida sejam concebidos como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto reduzir o homem a um fragmento do homem. Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da exclusão.

Eugénio de Andrade, in 'Os Afluentes do Silêncio'

2 comentários:

Roberta de Souza disse...

Que texto mais lindo!!!
Dá vontade de ler toda hora...rs

bj
beta

A. João Soares disse...

Querida Beta,

Os países de língua portuguesa possuem bons pensadores e escritores com sensibilidade e muita arte, Eugénio de Andrade é um deles.

Beijos
João