segunda-feira, 24 de maio de 2010

O saber científico e a realidade

Tendo passado muitas décadas em estreito contacto com pessoas de grau académico superior fui confirmando a frase que um dia ouvi – o generalista sabe nada de tudo enquanto o especialista sabe tudo de nada. O generalista tem vagas noções, por vezes demasiado superficiais de uma vasta gama de assuntos, e o especialista sabe com profundidade um estreito sector do conhecimento.

Na vida prática em que são frequentes equipas de trabalho multidisciplinares é fundamental a função dos generalistas que têm que quebrar as barreiras separadoras dos especialistas de sectores diferentes e obter deles o contributo aplicável à melhor consecução do objectivo que o grupo pretende atingir. Um dos maiores óbices é, muitas vezes, o hermetismo da linguagem de especialistas, demasiado egocêntricos e com exagerada auto-estima, mostrando muitas vezes conhecer de cor textos de grandes sábios, sem tornarem evidente que digeriram bem tais teorias. O generalista deve saber dialogar com os especialistas e facilitar que eles dialoguem entre si com vista ao objectivo, a missão da equipa a que pertencem.

Segundo o ministro da Ciência e Tecnologia, Mariano Gago, «Portugal publica por ano 7 mil artigos científicos com relevância internacional», isto é, cerca de 20 por dia, o que constitui um factor de riqueza para o País. Assinalou que a publicação de artigos científicos no nosso país registou, na última década, um “crescimento explosivo, o maior crescimento europeu”. Neste espaço já foram referidos casos que vieram na imprensa mas, pelos vistos, eram uma amostra minúscula, certamente dos mais preocupados pela publicidade e que deram entrevistas aos jornais.

Segundo a notícia «Criar a ponte entre o 'saber' e o 'fazer'», constata-se que têm sido raros os casos em que se processava a transferência de conhecimento e inovação das universidades portuguesas para o tecido produtivo, à custa de dificuldades de comunicação e conjugação de interesses. Não era fácil a ligação da ciência à realidade prática. Contudo, o cenário tem vindo a mudar e a cooperação entre os meios académico e empresarial, principalmente nortenhos, tem sido uma prova dessa alteração. As pessoas consciencializaram-se de que "o funcionamento em rede entre empresas, universidades e organismos de investigação, é fundamental para a competitividade do país e traz vantagens mútuas para todas as partes" como disse Nuno de Sousa Pereira, director da Escola de Gestão do Porto - University of Porto Business School (EGP-UPBS).

Ainda bem que o panorama nacional está a olhar para as realidades da indústria e para as unidades criadoras de riqueza através da actividade económica. Com efeito, tendo sido encerradas as antigas escolas técnicas, comerciais e industriais o que. agora se considera um grave erro com efeitos de enfraquecimento do valor da mão-de-obra, por desqualificação, parece agora necessário criar formas de formação profissional devidamente estruturadas.

Quanto ao hermetismo e obsessão de especialidade, há quem diga que um dos grandes males do país é aparecerem muitos professores universitários no governo. Sem terem capacidade para descer à realidade e para decidirem em termos práticos e com utilidade para a vida dos portugueses. Outro mal do Estado é a percentagem excessiva de gente do Direito nas estruturas mais elevadas do poder.

Trata-se do oposto à China, em que sendo as inundações periódicas das extensas planícies pelas enchentes provindas do degelo, levaram à predominância de engenheiros hidráulicos nos órgãos do poder e com a sua colaboração e integração nos objectivos do Estado têm contribuído para um desenvolvimento de cerca de 10% ao ano em anos consecutivos. Entre nós, pelo contrário, a chusma dos de Direito não tem justificação racional e não tem aumentado a segurança das pessoas e bens, não tem melhorado o funcionamento da Justiça e a própria feitura das leis tem sido de tal forma deficiente que se fala agora que vão para o lixo três centenas de leis.

Quanto ao fraco desempenho de «cientistas» na vida real, há dias uma entidade, de alto nível académico, disse que há muito previa a actual crise financeira e que desde 2003 escreveu sobre isso, mas na realidade, embora com audiência e com cargos de responsabilidade, não se nota que tenha feito o suficiente para evitar a crise, nem para lhe atenuar os efeitos, nem agora para a resolver, atacando frontalmente os factores estruturais de erro que a causaram. E sem esses factores serem eliminados, a crise, mesmo que agora se resolva, voltará a aparecer em breve.

Teorias sem prática, sem enfrentar o óbvio, o simples, o real, não têm utilidade e até podem ser nocivas, pelo gasto de recursos em aventureirismos descabidos.

É realmente urgente que se crie a ponte entre o «saber e o «fazer».

2 comentários:

José Lopes disse...

Sem duvidar da sapiência de algumas classes dirigentes, diría que simplesmente ignoram a realidade, o que por outras palavras significa que não passam de ignorantes.
Precisamos do conhecimento, mas temos que aprender a "sujar as mãos" para poder-mos falar com autoridade, o que só a experiência pode dar.
Cumps

A. João Soares disse...

Caro Guardião,

Mesmo que os cientistas não sujem as mãos a «fazer», ser-lhes-á útil saber como se deve fazer, ter a noção da utilidade possível das suas teorias.
O verdadeiro cientista e investigador é útil, mesmo indispensável, para o progresso da ciência.
Já não se passa o mesmo com papagaios que se limitam a recitar coisas que leram e que nem sempre digeriram devidamente. Pior ainda são os snobs que gostam de ostentar intelectualidade que não têm e que, depois de muito falarem, não transmitiram nenhuma ideia clara, lógica, coerente que os destinatários percebam.
Para comunicar é preciso, em primeiro momento, ter a ideia na cabeça bem esboçada, de forma clara e perceptível e, depois, traduzi-la em palavras compreensíveis.
Já tivemos um PR que usava de uma tal confusão nos seus discursos, pretensamente intelectuais que, no fim, quem o ouvia resumia «só falou». Um dia os jornalistas tentaram explicar aos leitores o que o PR tinha dito e o autor teve de voltar à TV no dia seguinte explicar o que pretendeu dizer na véspera, mas, embora menos confuso não disse nada credível.
Faz lembrar uma resposta dada a uma loira de Cascais que falava sem parar e metia um «percebes?» no meio de cada três palavras. O interlocutor, cansado do esforço de tentar perceber, respondeu: «Percebo muito bem que não percebes nada daquilo que queres que eu perceba». É isso, a pessoa precisa de estar convicta daquilo que quer transmitir, formular a ideia de forma clara e, depois, procurar levá-la ao cérebro do outro.
Depois de se ter ideias bem definidas e de se saber como as comunicar é conveniente controlar se foram bem recebidas e se a aplicação prática correspondeu à intenção inicial.
Um Secretário de Estado da AI teve a falta de senso de dizer que os acidentes rodoviários eram provocados por idosos que se metiam em contra-mão e que ia tornar mais difíceis os exames para renovar as cartas. Foi-lhe explicado em carta aos jornais que «Não há senso» nisso, pois, além de ter havido jovens que também se enganaram na via da auto-estrada, a maior parte dos acidentes se deve a pessoas entre os 20 e o 30 anos. Ele tinha falado por falar, sem conhecer o problema, sem conhecer as estatísticas. Isso não impede que hoje ocupe um lugar bem remunerado. Valoriza-se a vacuidade palavrosa, com ares intelectuais.

Um abraço
João
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