sábado, 2 de janeiro de 2010

Naquele tempo. In illo tempore

Como já disse aqui e aqui, tenho imenso gosto em conversar com o velho António se bem que nem sempre tenho disponibilidade de tempo para o ouvir, tão assoberbado ando com os blogs e a preparação de leitura para os estimados visitantes. Mas ele realmente merece mais atenção da minha parte.

Por isso, neste início de ano, aqui vou referir uma pequena conversa de há dias. Estávamos a sós num snack-bar onde, a meu pedido, nos encontrámos para almoçar e conversar sobre a actualidade, para alinhavar o esquema de expor os meus pensamentos nos posts mais recentes que focavam coisas de algum melindre e exigiam cuidados especiais.

Conversar com este velho sábio que é um poço de saber, não o saber empinado das sebentas e recitado em reuniões sociais, mas de reflexões sobre tudo o que lê e ouve e que aprofunda na procura de respostas a uma série de perguntas do género: o quê?, quem?, onde?, como?, porquê?, para quê?, e depois?, etc. Depois, com as respostas que obtém, cria teorias filosóficas, muito suas, mas de muito interesse, e que ele nunca considera definitivas pois as constantes perguntas conduzem a actualizações.. Para ele é impossível sustentar um erro indefinidamente por teimosia ou capricho, como tem acontecido, nesta última meia dúzia de anos, em que os governos têm sido obrigados pela pressão popular a fazer recuos que têm causado custos incalculados e incalculáveis aos portugueses.

Com a sua base de saber e a sua filosofia, parece que o António tudo compreende e nunca se sente surpreendido por qualquer burrice de políticos, por ver sempre o que provavelmente está por detrás, quase sempre interesses inconfessados opostos aos interesses nacionais.

Mas no desenrolar da conversa sobre orçamentos, sociatas a que chamam «casamento», por não terem a originalidade querem aparentar, cabalas, palhaçadas, malhas, etc, um empregado do snack-bar deixou cair um prato que se partiu em vários cacos. Aí, o velho filósofo teve uma transmutação repentina e saltou para «in illo tempore»,.expressão que duvidou se tinha alguma coisa a ver com «os meus amores» de Trindade Coelho, e iniciou uma reflexão em voz audível sobre a sua meninice na aldeia, os amoladores, os latoeiros, etc.

A louça de barro rachada não era atirada ao lixo, era guardada com cuidado até uns dias depois se ouvir a gaita do amolador. Era uma gaita parecida com instrumentos musicais de grupos dos Andes, construídos por tubos paralelos de tamanhos diferentes que produziam notas desde as mais baixas às mais agudas e eram tocadas de modo característico, sempre igual, anunciador do amolador.

Era um homem com uma bicicleta que tinha uma roda de amolar movida pelos pedais e que servia para amolar (afiar, aguçar) facas, tesouras, canivetes. Além disso reparava guarda-chuvas, punha uns pingos de solda num cântaro de levar à fonte e colocava gatos na louça, na tal louça rachada. Os gatos eram como que agrafos que apertavam os dois lados da louça em que tinha sido colocada uma maça que colava as duas partes, e a peça poderia assim continuar ao serviço por mais uns tempos, talvez meses.

Mas o António não é pessoa para se agarrar teimosamente a um assunto sem o relacionar com outros, sem dele tirar conclusões para a actualidade e projectar no futuro. E surgiu a pergunta e agora?. Agora é a degradação do ambiente de forma continuada e sistemática. Mas que tem a ver uma coisa com a outra?

Agora, à mínima deficiência atira-se para o lixo. A camisa a que cai um botão vai para o lixo. Isto que parece progresso acabou por escravizar as pessoas a uma vida artificial. O ambiente é sobrecarregado com a exploração de matérias primas para mais produção, o lixo é sobrecarregado com maiores quantidades, alguns de demorada eliminação natural ou incinerados com a consequente poluição atmosférica. Tudo isso em prejuízo cada vez mais grave do ambiente, da Natrureza, E as pessoas? Essas têm que trabalhar mais e viver numa pressão constante e deixarem-se viciar no consumismo. Os horários de trabalho para fazer face à maior necessidade de produção são mais sobrecarregados e é ocupada mais mão-de-obra com menos tempo de descanso e lazer. E para as pessoas ganharem para a sua necessidade de consumo, deixam de ter tempo para VIVER, e vão «andando», sem darem atenção aos filhos, aos pais e avós idosos, sem terem tempo para actividades de convívio social e de cultura.

E do alto da sua sabedoria bem consolidada e sempre em actualização permanente, o António dizia que não é saudosista do «in illo tempore» que até se tem adaptado muito bem aos tempos actuais e dá lições de vida a quem o quiser ouvir.

O António compreende tudo o que está a passar-se, mas teme pelo futuro dos netos que vão ter uma vida muito mais escravizadora do que a actual. As pessoas vivem na ânsia constante da inovação, das novas tecnologias, mas estão a construir as correntes que as prendem. Ainda não sabem trabalhar bem com um novo aparelho e logo compram outros, passando a vida sempre ignorantes, aprendizes, sem nunca saberem tudo. Sabem sempre nada de nada. O António diz que é um generalista, porque procura saber nada de tudo. E nunca quis ser especialista porque esses têm um horizonte muito estreito, sabendo tudo de nada!

E assim se passou aquele almoço muito frugal no aspecto de alimento físico mas riquíssimo do ponto de vista espiritual e intelectual. Muito obrigado caro António. Até breve e Bom Ano 2010.

2 comentários:

Luis disse...

Caríssimo João,
Aqui por Algés ainda passa um amolador com a sua gaita e toda a gente sabe que quando ele aparece vem com ele a chuva. É "tiro e queda", até há quem fique danado só de ouvir a dita gaita.
Mas é mais uma profissão que tende a acabar neste consumismo desenfreado em que se vive. Os "cotas" ainda se lembram destas e de outras profissões mas a "malta jóvem" nada sabe disso. Ainda há vendedores de castanhas e alguns amoladores, mas as senhoras da fava rica, da venda do leite e queijos e as varinas bem como o "chico do burro" com as hortaliças há muito que acabaram
É a vida actual com as suas pressas e com a ASAE que não permitem o manter estas tradições.
Um abraço amigo extensivo ao teu amigo António.

A. João Soares disse...

Amigo Luís,

Há boas recordações do passado, algumas já sem aplicação prática mas que nos devem fazer pensar nos porquês e nos resultados de estarem fora de uso.
Quanto ao consumismo e aos inconvenientes para o Ambiente, modernamente, os ambientalistas dizem que quanto ao lixo há a regra dos 4 erres: Reduzir, Reparar, Reutilizar, Reciclar.

Os recursos naturais devem poupar-se, utilizar-se com parcimónia para evitar que se esgotem.
O consumo deve ser encarado segundo a necessidade e não se esbanjar poupanças com coisas desnecessárias. A publicidade deve ser encarada com ponderação e não se deve comprar por ordem do propagandista. A ostentação de riqueza é prova de infantilidade e cérebro pouco dotado, manifestação de debilidade, de fraqueza mental.
Quem tem valor não precisa de exagerar a aparência e de mostrar carros e telemóveis comprados a crédito.

Falta nas nossas creches e escolas o ensinamento de economia doméstica, fazer contas à vida, aprender o valor do dinheoro que deve ser gasto com peso, conta e medida.

Nisso, o meu amigo António tem muita razão. As pessoas com a mania do consumismo e ostentação tornam-se escravas da opinião dos outros.

Por isso, há muitas famílias que vão passar mal em Janeiro e Fevereiro para saldarem os débitos do cartão de crédito pelos exageros do Natal.

Somos um povo sem cultura, sem saber pensar antes de decidir.

Tenho que trazer aqui mais relatos de conversas com o meu amigo António.

Um abraço
João