Depois dos desabafos do velho António já aqui reproduzidos em A boa estrela e a tempestade e Como lhe nasceu o gosto pela leitura começa a ser um prazer sentar-me a seu lado e ouvi-lo falar dos seus tempos de menino com dificuldades que lhe exigiam um bom planeamento do tempo e sentido das responsabilidades sem nunca esquecer a amizade aos colegas.
Conta que tinha um gosto muito especial pela matemática e, como lhe faltava o tempo para estudar, tinha que sair das aulas com a matéria bem sabida, para o que tinha de estar com a máxima atenção e perceber o esquema de raciocínio para a demonstração dos teoremas e outros problemas.
Nas vésperas dos pontos de matemática o Madeira, hoje já falecido, mostrava-lhe sebentas cheias de problemas resolvidos e alguns em que não tinha conseguido encontrar a solução. Comprava uns livros de exercícios com os quais se treinava e o António, ao ver tanto trabalho, ficava com um problema de consciência, um sentimento de culpa, por não ter feito tanto esforço para se preparar para o ponto. Mas mesmo assim, ajudava o amigo a resolver os problemas que não descodificara e obtinha das melhores classificações quando não tinha a melhor.
Ao falar nisto, recordou-se de um facto curioso pelo resultado final de uma partida de estudantes. Passou-se no 3º período do 2º ano em 1947, ainda no Liceu Alves Martins, numa rua íngreme que ia do adro da Sé para a rua Serpa Pinto, antes da mudança para o Liceu Nacional de Viseu (por trás do Quartel de Infantaria 14). Como as salas de aula tinham carteiras duplas, os pontos ou exercícios para classificação eram feitos na grande sala 28, com carteiras individuais, o que tornava difícil copiar uns pelos outros. Iam ali realizar o exercício de matemática decisivo do último período. O seu colega João Assis, também já falecido, tinha tido a matemática, nos dois primeiros períodos (que terminaram no Natal e na Páscoa) notas muito baixas e, como para passar para o terceiro ano, a soma das classificações dos três períodos tinha que no mínimo ser igual a 29, ele precisava de uma nota muito alta e não sabia para isso. Pediu ao António para ficar perto do fundo da sala, e ele ficaria na carteira logo atrás; o António, enquanto fazia as contas encostava a folha com o problema anterior à direita para ele copiar. Tudo correu bem sem que a manobra fosse notada.
Mas daí a poucos dias o professor, Armindo Brito, entregou-lhes o ponto já classificado e houve uma surpresa. O melhor ponto, inteiramente certo foi o do Assis, o único que acertou tudo, a seguir foi o António, com um problema errado e depois os outros.
Era costume, na correcção do ponto, ir um aluno ao quadro fazer a resolução dos problemas e, dessa vez, o escolhido pelo professor foi o João Assis. Talvez tivesse ficado espantado com o fenómeno de tal classificação. Todos os colegas da turma, incluído o António, estavam admirados com o mistério que não conseguiam perceber. Mas o mistério adensou-se: ele, apesar de ter tudo correcto, ao ir ao quadro não soube equacionar nenhum dos problemas. Para cada um, ele depois de falhar, ficava ao lado e via um colega que era chamado para resolver.
Souberam, por mero acaso, que o problema que o António errou não foi copiado pelo Assis que o copiou do colega que ficara atrás e estava certo. Depois, como havia muita solidariedade entre todos os alunos, decidiram ir a casa do professor pedir para dar ao Assis a nota de que precisava para passar o ano. Foi combinado que nem o António nem o que estava atrás fossem para que o professor, ao olhar para a cara deles não se lembrasse da proximidade entre eles, na sala, e a ajuda que foi dada ao Assis. O António nunca chegou a saber se o professor soube o que se passara e explicasse o enigma. Depois de sair do Liceu, o António nunca mais viu o Assis e soube há relativamente poucos anos que já faleceu.
Podem tirar-se muitas conclusões conforma a intenção dos pensadores, mas quando a sorte é em demasia transforma-se em azar. O facto de ter o único ponto completamente certo, resultou para o Assis numa situação difícil e traumatizante durante uma aula inteira.
El País
Há 14 minutos
2 comentários:
E é verdade, ter tudo certo, quando não é habitual, ainda por cima!! Não podia correr bem. Beijinhos.
Querida Paula,
Além de ter tudo certo, foi o único a não ter falhas, Grande mistério? O que teria pensado o professor? Como foi possível?
O azar foi não ter conseguido pegar de forma correcta num único dos problemas...
Obrigado pela visita e pelo comentário
Beijos
João
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