sábado, 28 de março de 2009

Alterações Legislativas, Presos e Criminalidade Violenta

1. A crise de segurança pública por que passa Portugal neste momento tem sido objecto de inúmeras análises e têm sido avançadas algumas explicações para as causas de tal fenómeno.
Não pretendemos agora voltar à análise que fizemos no Editorial n.º 52, antes apenas acrescentar alguns dados estatísticos que permitem clarificar qual o papel das alterações legislativas de 2007 em tudo isto.

2. Recordemos que entre as alterações legislativas operadas em 2007 (principalmente, Código de Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, e Código Penal, pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), se contam as seguintes:

i. Redução do número de crimes em que pode ser aplicada a prisão preventiva (crimes dolosos puníveis com pena de prisão de máximo superior a cinco anos, quando a lei anterior exigia apenas que fossem de máximo superior a três anos; aliás, continua a ser esse o limite fixado na Constituição);

a. Deixaram de ser susceptíveis de prisão preventiva crimes como os de falsificação de documento e passagem de moeda falsa e alguns dos furtos qualificados (como aqueles praticados como modo de vida);

ii. Redução dos prazos da prisão preventiva sem que isso tenha sido acompanhado por qualquer melhoria nos meios que efectivamente permitiriam concluir as investigações mais rapidamente (mais investigadores, mais meios humanos e técnicos que permitam realizar exames e perícias de forma significativamente mais célere);

iii. Eliminação incompreensível e sem qualquer justificação da possibilidade de recurso pelo Ministério Público das decisões do juiz de instrução que não aplicam ou que revogam medidas de coacção;

a. Ou seja, hoje, contrariamente ao que sucedia antes da reforma, se o juiz de instrução da instrução não aplicar a medida de coacção requerida pelo Ministério Público,nomeadamente a prisão preventiva, está vedado ao Ministério Público o recurso para que essa decisão seja apreciada pelo Tribunal da Relação; se é recorrível a decisão que aplica uma medida de coacção, também deverá ser recorrível a decisão que não a aplica!;

iv. Redução da possibilidade de detenção fora de flagrante delito pelo Ministério Público e pelo juiz de instrução: agora só é possível fazê-lo quando houver fundadas razões para crer que o visado não se apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado;

a. Deveria ter ficado consagrada também a possibilidade de detenção quando houver fundadas razões para crer que se verificam qualquer uma das outras circunstâncias previstas no artigo 204.º: ou seja, se existem fundados motivos para crer que até ao momento do interrogatório e aplicação da medida de coacção o arguido irá perturbar o inquérito (destruindo provas documentais, coagindo testemunhas, etc.), que irá continuar a sua actividade criminosa ou perturbar gravemente a ordem e tranquilidade públicas, parece óbvio que não poderá aguardar-se que o juiz agende data para a realização da diligência, que o arguido disso seja notificado (o que, como se sabe, poderá demorar muito tempo ou nunca suceder) e depois que se digne comparecer!

v. A detenção fora de flagrante delito só se mantém se houver razões para crer que o detido não se apresentará espontaneamente perante a autoridade judiciária no prazo que lhe for fixado.

a. A norma tem causado grandes dificuldades aos órgãos de polícia criminal na determinação do que são “razões para crer que o detido não se apresentará espontaneamente perante a autoridade judiciária”;

b. Note-se ainda que, sem que se perceba o motivo da diferença, no artigo 257.º se exigem “fundadas razões” para mandar deter e aqui apenas “razões” para manter a detenção.

c. Por outro lado, mesmo que não existam tais razões, outras há que deveriam justificar a manutenção da detenção: são as circunstâncias já previstas no artigo 204.º.
Exemplificando: não deveria continuar detido o indivíduo que foi detido por furto e o órgão de polícia criminal tem razões para crer que, se liberto, irá praticar outros furtos (o que é frequente com indivíduos toxicodependentes em elevado grau que farão tudo até conseguirem o dinheiro necessário para conseguir a próxima dose)? E se for um agressor conjugal? Espera junto da sua vítima (que acabou de pedir auxílio à polícia) o momento de se apresentar no tribunal? A libertação de tal indivíduo, ainda com “sangue nas mãos”, não irá gerar grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas? Tais situações têm chocado a comunidade e gerado sentimentos de impunidade nos criminosos.

vi. Passagem de três para cinco anos do limite das penas de prisão que podem ser suspensas na sua execução (o que veio abrir a porta a inúmeras suspensões de execução de penas de prisão por roubo com arma, cuja moldura penal vai de 3 a 15 anos, o que antes apenas seria possível em casos de condenação na pena mínima – 3 anos – o que raramente acontecia);

vii. Revogação da norma que, em casos de condenação a pena de prisão superior a 5 anos pela prática de crime contra as pessoas ou de crime de perigo comum, apenas permitia a concessão de liberdade condicional após cumpridos dois terços da pena (passando agora tal a ser possível depois de cumprida metade da pena).

3. Ainda em 2007 (31 de Agosto), foi publicada a Lei n.º 51/2007 definido os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio 2007-2009. Tal lei, no seu artigo 15.º, estabelece que o Ministério Público deve requer preferencialmente a aplicação de medidas de coacção diversas da prisão preventiva sempre que a existência de risco de continuação da actividade criminosa não exija a aplicação dessa medida.
O artigo 204.º do Código de Processo Penal enumera três conjuntos de circunstâncias que são as exigências cautelares que as medidas de coacção, incluindo a prisão preventiva, se destinam a acautelar:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Ora, o governo e maioria parlamentar quiseram e conseguiram assim limitar a aplicação da prisão preventiva a apenas uma das circunstâncias que podem fundamentar a aplicação dessa medida de coacção (o perigo de continuação da actividade criminosa) deixando de fora as demais (fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, e perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas).

4. Estas alterações legislativas transmitiram à sociedade em geral e ao “mundo criminoso” em particular inequívoco sinal de brandura do sistema penal, ao mesmo tempo que reduziram as possibilidades de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e de penas de prisão efectivas.

5. As referidas alterações legislativas tiveram assim evidentes consequências nas prisões portuguesas:significativa redução do número de presos em cumprimento de pena e do número de presos preventivos.
Uma breve análise , permite concluir facilmente que:Portugal está entre os países com menor percentagem de população prisional em prisão preventiva (situação em que já se encontrava antes da reforma penal e processual penal de 2007): 19.07%;

(1) Esta percentagem será até a menor de entre todos os países referidos, se, como se faz em muitos deles, contarmos como em prisão preventiva apenas os indivíduos que ainda não foram julgados em primeira instância (excluindo assim os que já foram julgados e aguardam decisão final): 12.7%!

(2) No último ano, verificou-se na generalidade dos países o aumento da população prisional. Tal.apenas não sucedeu em Portugal, Alemanha, Áustria e Holanda;

(3) Portugal foi o país com maior redução na ratio de presos por cada 100.000 habitantes: de 120 para 100.

(4) Desde a reforma de 2007 até 1 de Setembro de 2008, verificou-se uma diminuição de 2038 indivíduos na prisão, ou seja, de 15.91%.
A seguinte tabela contém dados obtidos no sítio online (cfr. http://www.dgsp.mj.pt/) da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais desde 1998 a 2008:

Ano(2) N.º Total Presos N.º. Preventivos % Preventivos
1998 14880 4250 28,56
1999 13093 4052 30,95
2000 12944 3854 29,77
2001 13260 3690 27,83
2002 13918 4219 30,31
2003 13817 3492 25,27
2004 13152 3000 22,81
2005 12889 3044 23,62
2006 12636 2921 23,12
2007 (3) 11587 2327 20,08
2008 10765 2053 19,07

(2) Valores verificados a 31 de Dezembro de cada ano, com excepção de 2008, em que os números reportam ao dia 1 de Setembro.
(3) A 15 de Julho de 2007, ou seja, antes da reforma do Código de Processo Penal e do Código Penal, o número total de presos era de 12803 e 22.7% desses estavam em prisão preventiva. Verifica-se assim que entre esse momento e o final de 2007 (cinco meses e meio) houve uma diminuição de 1216 indivíduos presos, ou seja, 9.5%.
(5)Constata-se que desde 1998 se vinha verificando, ainda que com pontuais oscilações, uma gradual diminuição na população prisional em geral e no número de presos preventivos em particular. As reformas legais de 2007 acentuaram significativamente esse sentido, existindo hoje menos de metade dos presos preventivos que existiam há dez anos, mais concretamente, menos 2197.
Em 15.07.2008, a taxa de ocupação das prisões portuguesas era de 103.1%; no dia 01.09.2008 esse valor era já de 87.6%.
A pretendida e bastante conseguida redução do número de presos e de presos preventivos não era, então, necessária nem tinha qualquer fundamento de realização de justiça, antes servindo apenas propósitos economicistas.
(6). Em comunicado emitido na última semana de Agosto, o Gabinete Coordenador de Segurança revelou que, segundo os dados que recolheu, cuja fiabilidade está longe de ser absoluta, no primeiro semestre de 2008 verificou-se uma tendência de crescimento da criminalidade em relação ao ano transacto de cerca de 7%; no mesmo período, a criminalidade violenta e grave aumentou cerca de 15% em relação ao período homólogo de 2007.
De 2006 para 2007 verificou-se um aumento de 33% no número de crime de roubos de automóveis na presença ou proximidade do seu legítimo possuidor (conhecidos por “carjacking”), existindo já fortes indícios de que essa tendência de crescimento continuará em 20084.
Nos últimos dias, a comunicação social tem transmitido que só no primeiro semestre de 2008 se verificaram mais roubos a bancos do que em todo o ano de 2007 (130 para 107).
Não é ainda conhecido o relatório da Procuradoria-Geral da República respeitante ao ano de 2007. Porém, no primeiro semestre de 2008 no Distrito Judicial de Lisboa verificou-se que5:
•(a) Comparando o 1.º semestre de 2008 com igual período de 2007, houve um aumento significativo de entradas, já que no corrente ano entraram 105.558 contra 95.314 em igual período do ano passado, ou seja, mais 10.244, o que equivale a um aumento de 10,74%.
•(b) A maior fatia deste aumento situa-se nos crimes contra o património visto que no 1º semestre de 2007 entraram 51.843 inquéritos, contra os actuais 59.990 (sendo certo também que aumentou percentualmente o número de inquéritos contra conhecidos neste segmento: 56% agora contra 39% no ano passado).

6. A ligação entre as reformas penais de 2007, a redução do número de presos e o aumento da
criminalidade violenta têm, pois, uma ligação intrínseca, de causa-consequência, ainda que, claro, não exclusiva.

A Direcção do SMMP (Sindicato dos Magistrados do Ministério Público)
Lisboa, 5 de Setembro de 2008
(4) Cfr. Relatório do Grupo de Trabalho CARJACKING de 28 de Maio de 2008 (disponível em http://www.mai.gov.pt/).
(5) Conforme referido no relatório da respectiva Procurador-Geral Distrital, disponível em
http://www.pgdlisboa.pt/pgdl/docpgd/doc_mostra_doc.php?nid=83&doc=files/doc_0083.html.

1 comentário:

Unknown disse...

Boa tarde,
Caso pretendam obter mais informações sobre o Carjacking em Portugal, acedam a www.carjacking.com.pt, onde irão encontrar notícias, formas de o evitar, entre outros.