sábado, 10 de maio de 2008

Homenagem à cadela «Linda»

Deixou os donos e o Tintim, que passaram a sentir a sua falta, cada um à sua maneira, mas com visível desconsolo. E a circunstância leva a reflectir que o sentido de posse e o amor são muitas vezes sentimentos mais egoístas do que de generosidade, nem sempre se pensando mais no ente amado do que no prazer de amar.

A caminho do 14º aniversário, partiu de forma inesperada, com um aviso muito curto. Há dois anos, um mês e um dia, depois de ser diagnosticada a diabetes em estado muitíssimo grave, que apenas lhe era ministrada a alimentação de dieta e injecções de insulina de 12 em 12 horas, com um rigor de minuto, e frequentes idas ao Hospital Veterinário para controlo da glicemia e de outros aspectos a fim de ajustar a dose de insulina. Era uma rotina cumprida com tal rigor que a vida doméstica lhe era sujeita sem qualquer reclamação ou desconforto. Tudo estava padronizado e esperava-se que continuasse por mais muitos meses, embora houvesse a convicção de que não seriam muitos mais.

Mas, a idade não perdoa e surgem complicações ligadas ao tempo de utilização da máquina corpórea, embora a aparência fosse boa, fruto do carinho e bons tratos que lhe eram dedicados. Mas, surgiram pequenos sintomas de que algo estava menos bem. Começou a notar-se que as fezes saíam com dificuldade e um pouco achatadas, a urina saía à custa de esforço cada vez maior e em quantidade reduzida ao longo de várias tentativas. Foi comunicado à veterinária que se inclinou para possível inflamação, mas nada melhorou com os antibióticos. O mal-estar tirou o apetite, que se tornou grave, pois não era saturação pela monotonia da dieta, já que foram experimentadas alterações sem resultado. No dia 8 antes da consulta não urinou e depois, apesar do soro e do antibiótico continuou sem urinar e o abdómen ficou intumescido devido ao enchimento da bexiga.

No dia 9 à hora de abertura, já estava na fila para nova consulta. Foi alvitrado à veterinária a hipótese de haver qualquer tumor que pressionasse a parte final do intestino, produzindo o achatamento das fezes, e que apertasse a uretra impedindo a passagem da urina. Embora os técnicos não gostem de alvitres dos leigos, o relacionamento durante estes mais de dois anos permitia um diálogo aberto e franco e foi feita radiografia e ecografia que mostravam uma massa já volumosa, possivelmente um tumor no útero. A palpação com o dedo mostrou que o intestino estava empurrado, por essa massa, contra a coluna, ocasionando a dificuldade de passagem das feses.

A tentativa de utilizar uma algália para esvaziar a bexiga não foi possível, apesar de terem sido utilizadas três modelos, incluindo um metálico, porque havia um ponto em que a resistência era tal que não podia ser vencida a não ser com o risco grave de rotura.

Para ver se o volume do abdómen era a bexiga foi feita uma punção num flanco e confirmou-se que era realmente ela, empurrada para a frente pela massa estranha existente mais à retaguarda. Foram retiradas cerca de 20 seringas de urina para aliviar, mas isso, não chegava a ser metade da existente e não era uma solução viável para a sobrevivência. A idade, o facto da diabetes, a debilidade por deficiente alimentação dos últimos dias (por esse motivo tinha estado na consulta na véspera), a veterinária, com muita delicadeza aconselhou que a solução mais adequada seria a eutanásia, porque seria maldade manter o bicho a sofrer sem a mínima esperança de melhorar nem de viver mais do que um ou dois dias, porque o sangue, por falta e de expulsão da urina, ficaria intoxicado. A dona, nem podia ouvir tal ideia e nem conseguiu assistir aos cuidados que estavam a ser feitos. Por fim, dado o fracasso da algália, os resultados dos exames radiográfico e ecográfico, e a história clínica, a veterinária chamou à sala a dona e conseguiu, embora com dificuldade, convencê-la. Para a «Linda» foi o fim de um sofrimento sem a mínima esperança e uma antecipação, certamente de umas horas ou um dia. Mas para a dona foi uma dor profunda, que não lhe foi fácil controlar.

E é a este momento decisivo que se refere a reflexão inicial sobre o «egoísmo» do amor. Mesmo que doente e a sofrer, sem esperança, não queria perder aquela companheira de muitos anos, que não deixava ninguém chegar à dona. Esta começava dizer que a «Linda» é que era a sua dona, teimosa, convicta, persistente, que se enraivecia (só pelo som) com o Tintin para ele não ocupar junto da dona o lugar que ela queria só para si. Por esta dedicação, a limpeza, a disciplina, a paciência nos tratamentos, deixa saudades, um lugar vazio e um registo indelével na memória. E este pequeno texto é uma ténue imagem de um acontecimento que evidencia que os animais de estimação, são para os donos quase como seres humanos da família. Merecem amizade e deixam dor e saudade.

4 comentários:

anamarta disse...

Caro João
Senibilizou-me este texto. Eu tenho um cão (Benny) que gosto muito, cá em casa também dizem que ele é que é o meu dono. compreendo ao desconsolo que os donos estão a viver, eu também sofreria muito se o meu Benny me faltasse! tanto com os animais como com as pessoas, nós por vezes tornamo-nos egoístas e só pensamos na nossa dor ao perdê-los, e não no sofimento que eles estão a sentir. É próprio do ser humano!
um abraço

A. João Soares disse...

Cara Ana Marta,
Obrigado pelas suas palavras. Os animais de companhia são tratados como pessoas, quer nos cuidados de saúde, quer nos sentimentos que por eles nutrimos. A Linda foi objecto de todos os cuidados e nada há que criticar aos donos, antes pelo contrário. O seu esforço, não apenas financeiro, foi muito meritório. Quando falei no lado egoísta do amor e das afeições, referia apenas a hesitação final da dona quanto à aplicação da eutanásia, num momento em que nada de bom havia a esperar, sem alternativa. O afecto e as emoções tolhem as decisões difíceis e definitivas.
Um abraço
A. João Soares

Mariazita disse...

Meu caro João
A leitura desta "Homenagem" deixou-me muito emocionada.
Também eu tive um cão que, em 1991 teve que ser sujeito a eutanásia porque no fim da vida cegou completamente, devido a várias doenças de que foi vítima. Coitadinho, andava pela casa aos encontrões a tudo, por não conseguir ver nada.
Só Deus sabe o desgosto que eu tive!
Por isso compreendo bem a dor da dona da Linda. É como perder um membro da família.
E aí entra o tal egoísmo que sempre faz parte do amor: a dor da perda sobrepõe-se a tudo. Inconscientemente quase preferíamos continuar a tratá-los, mesmo vendo-os sofrer, do que vê-los partir.
Talvez dê algum consolo pensar que ela foi para junto dos «Anjos Caninos», lugar mais que merecido depois de tanto sofrimento.
Beijinhos de solidariedade
Mariazita

A. João Soares disse...

Querida Mariazita,
Obrigado pelas suas palavras. No meio de tudo isto, a Linda não sofreu muito ou, pelo menos não o evidenciou. Os tratamentos foram um cerimonial a que os donos se submeteram com uma dedicação religiosa. Até o Tintin, sentia o dever de alertar que bateram as 07h00 e as 19h00 para dar a pica da insulina. Mas, à medida que o tumor crescia e lhe dificultava fazer as necessidades, era visível o esforço para tão escassos resultados. O verdadeiro sofrimento, embora não se manifestasse de forma ostensiva, começou um ou dois dias antes, ao ponto de deixar de urinar e o abdómen se dilatar devido à bexiga excessivamente cheia. Ainda houve a esperança de se resolver com a algália, mas depois de quase uma hora de trabalho da veterinária, viu-se que não era possível e teve de ser tomada a decisão. Durante essas tentativas para algaliar, ela já parecia quase inconsciente (já não comia há dois dias por nada lhe apetecer) e, quando começou a ser injectada com o produto letal, logo aos primeiros «cheiros» deixou de se aguentar nas pernas. Foi um apagar suave sem dor.
O dono quis ser forte e assistir, embora a veterinária lho perguntasse como a aconselhar ir embora e a fazer sucessivas perguntas se estava a sentir-se bem. No fim, ao querer responder a uma pergunta da doutora, deu conta que não tinha voz, devido à emoção. Os homens não são valentes como querem convencer-se!
Mas, para a dona que acentuara a afeição à sua «dona», sua menina, durante a doença, nada se esquece e sente a casa vazia e o quotidiano com falta das referências habituais.
Obrigada pela sua solidariedade
Beijos
A. João Soares