Já lá vão 35 anos. Parece que foi ontem.
Por António Neves, tenente-coronel comando
Há momentos na vida em que tudo parece acabar, tudo se desmorona, tudo se desmancha, tudo cai, tudo desaparece num turbilhão imenso, confuso e escuro.De repente e sem que nada o fizesse crer, todos os nossos projectos, todas as nossas fantasias, todos os nossos castelos construídos ou a construir, tudo desapareceu inexoravelmente de forma brutal, cruel e instantânea. Os sonhos, os planos longamente arquitectados para um início de uma vida adulta e organizada, que na prancheta da imaginação se apresentam sempre de forma risonha e apelativa, tudo desapareceu, tudo se escoou, tudo se afundou, devorado por esse tremendo “buraco negro” afunilado e profundo.
Já lá vão 35 anos.
A constatação da dura realidade em que nos encontrámos, a certeza de que o pesadelo era palpável e é real, a consciência da monstruosa injustiça que os deuses permitiram que sobre nós se abatesse, geraram em nós sentimentos de raiva, de dor e de inconformismo que apelaram às nossas mais recônditas reservas de energia e de resistência para conseguirmos emergir de todo este caos. O destino reclamou de nós pesado tributo. Iremos pagá-lo mas iremos igualmente cobrar dividendos.
Já lá vão 35 anos.
Não lançámos a toalha ao chão. Não aceitámos a derrota e recusámos a rendição. Por muito poderosas e destruidoras que sejam as forças que sobre nós se abatam, por mais profundas que sejam as marcas e as feridas que provocam e enquanto subsistir a nossa capacidade de pensar e a nossa vontade própria, há sempre coisas que são indestrutíveis e que são as grandes armas que irão permitir vencer a adversidade e lutar contra todas as barreiras: a personalidade, o carácter, a força interior, a criatividade e o poder de iniciativa. Com este arsenal e com o sólido e indispensável apoio dos entes queridos e dos amigos, é e foi possível, recriar todo um novo projecto de vida, voltar a colocar na prancheta novos planos e novos horizontes, voltar a sonhar e voltar a acreditar nas fantasias.
Já lá vão 35 anos.
A luta não é, nem foi fácil. As múltiplas barreiras físicas, culturais e sociais continuam a ser tremendas e por vezes difíceis de ultrapassar. Ao longo desta caminhada, dia após dia, mês após mês, ano após ano, foi necessário subir montanhas e atravessar desfiladeiros. Poucas vezes encontrámos planícies. Foi necessário abrir muitas portas, quase sempre fechadas, forçar a entrada, muitas vezes a pontapé. A novidade e o ineditismo da luta que vimos travando no seio de uma sociedade quase totalmente alheia a estas realidades, trouxe-nos algumas vezes momentos de desalento e de frustração, mas trouxe-nos igualmente, momentos de alegria e sentimentos de vitória, quando conseguimos finalmente abrir as portas ou atravessar os desfiladeiros, mostrando aos outros que todos juntos e cada um com a sua quota parte de participação, é que preenchemos e construímos o puzzle deste imenso universo que é a humanidade e/ou a sociedade ou as micro-sociedades em que estamos inseridos.
Já lá vão 35 anos.
É tempo de olhar para trás e sentir a agradável sensação e o prazer de quem cumpriu mais uma etapa na vida. Olhar para baixo, lá do cimo da montanha e ver o sinuoso edifício traçado que desde a base até aqui nos conduziu, vencendo e ultrapassando inúmeros e aparentemente intransponíveis obstáculos. Olhar com alguma nostalgia para tudo o que aconteceu, para tudo o que foi construído, para tudo o que foi concretizado, quase sempre a partir do zero, como tudo hoje parece tão simples e tão fácil.
Já lá vão 35 anos.
Para nós e contrariamente às conhecidas teorias da astrofísica, primeiro aconteceu o “buraco negro” e depois o “grande boom” que permitiu que tudo se recreasse e que tudo se reconstruísse. E assim aconteceu e vai acontecendo. Aquilo que aconteceu numa fracção de tempo, que foi um hiato da nossa existência e em que tudo parecia irremediavelmente perdido, voltou a ser realidade e a vida reapareceu com todo o seu esplendor.
As actividades profissionais e culturais, sempre vividas e desenvolvidas, o envolvimento e a participação em múltiplas iniciativas e projectos de âmbito social e comunitário, a partilha de conhecimentos e experiências com pessoas e instituições, permanente contacto e convívio com os amigos, aquecem-nos o ego e dão-nos a certeza de sermos membros pro-activos da grande aldeia a que pertencemos. Mas há um factor que é, e foi fundamental para que o “boom” que sobreveio ao “buraco negro” acontecesse: o calor humano e o amor da família e dos amigos. Sem o companheirismo, o apoio e o amor sempre presentes, da família, dos pais, dos irmãos, da esposa, dos filhos e agora dos netos, as vitórias alcançadas não teriam nem o sabor nem o significado que todos lhes atribuímos. Foi por eles e com eles que tudo se realizou.
Faz hoje 35 anos que esta saga começou.
Cascais, 24 de Julho de 2007»
A. Neves, Tenente-coronel Comando, in Passa-Palavra
NOTA: O Amigo António Neves é, no meu conceito, um herói, não por ter sido ferido em combate e ter ficado totalmente invisual e sem as duas mãos, porque isso pode acontecer a qualquer um, mas porque, tendo sofrido uma tragédia que deixaria um ente normal destruído para o resto da vida, soube de uma forma muito inteligente desenvolver uma luta permanente, que o levou a encontrar uma forma muito digna e exemplar de superar as dificuldades. Já tive o grande prazer de referir as suas qualidades de Homem de carácter e força de vontade indomável, ao expressar as minhas impressões dos primeiros contactos que com ele tive, aqui e aqui. Não sei dizer mais mas tudo o que pudesse dizer seria pouco para exprimir a minha admiração, respeito e muita consideração pelo Sr. Tenente-coronel António Neves.
Parabéns António Neves pela sua tenacidade e força de vontade e pelo exemplo que tem dado.
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Há 4 horas
2 comentários:
Temos uma pátria voltada do avesso, onde os forros secundários, outrora escondidos, agora à mostra, tendem fazer esquecer, a boa fazenda de que o nosso fato é feito.
Um abraço. Augusto
É isso, é.
Boa tarde e um abraço.
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