sábado, 7 de julho de 2007

Aborto sem taxa moderadora

Decidi escrever algumas reflexões inspiradas por este artigo, mas nada nele é supérfluo e a melhor solução é transcrever na íntegra e fazer uma nota ligeira no fim.

Abortamento e Taxas Moderadoras
Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia, no Diário de Notícias

Conta Plínio que um sapateiro, depois de ter criticado uma sandália num dos quadros de Apeles, pensando com isso ter competência para criticar tudo o resto, ouviu do pintor a advertência: Ne, sutor, ultra crepidam: não vás, sapateiro, além da chinela.

Aí está um aviso inteligente, que é preciso escutar sempre. Procuro ter essa precaução.

Embora tenha estudado algo de Filosofia Social e Política, que sei eu de política, com que competência? Ficou-me apenas aquele saber comum de que a política é a arte complexíssima do possível, pois tem a ver com o poder - a dificuldade maior dos homens e mulheres é gerir o ter, o prazer e sobretudo o poder -, na tentação constante de se resvalar do bem comum para os negócios. Qual é exactamente a relação entre ética e política, sobretudo quando, numa sociedade-espectáculo, a própria crítica se dissolve ao ser ela mesma restituída em espectáculo? Depois, controla-se a opinião pública, entretendo-a com questões menores e até ridículas - para que se não pense nos grandes problemas.

Apesar de tudo, há pressentimentos, inclusivamente em relação a questões que vêm bastante de trás. Por exemplo, aquele saber difuso de que o País terá de sofrer ainda por muito tempo o erro da abertura apressada de universidades e institutos privados - não era preciso ganhar eleições? Há aquela convicção íntima de que se poderia ser muito mais eficaz no combate à corrupção e de que, por exemplo, os estudos sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa são inúteis, pois a decisão já estará tomada...

Começa até a instalar-se algum medo. Como escreveu António Barreto, há "a tentativa visível e crescente de o Governo tomar conta, orientar e vigiar. Quer saber tudo sobre todos. Quer controlar." Já não pode haver um desabafo, parece estimular-se a delação, pretende-se um ficheiro dos funcionários públicos onde constem inclusivamente pormenores da vida privada dos filhos, intenta-se um processo contra o bloguista que levantou dúvidas quanto à carreira académica de um político...

Tenho, por princípio, os políticos em boa consideração e procuro transmitir esse valor, pois acho nobre a actividade política referida ao governo da "coisa pública" por mor do bem comum. Mas vejo os jovens cada vez mais desinteressados pela política e ouço as pessoas com aquela queixa de que afinal "os políticos são todos iguais". Acredita-se em quem? Estará a democracia em perigo, sobretudo por causa da subordinação da política ao poder económico-financeiro, de tal modo que "estar lá um partido ou outro é exactamente a mesma coisa"?

Será decente o desfasamento entre as promessas dos partidos e o seu cumprimento?

Apresento o caso concreto da despenalização da interrupção voluntária da gravidez ou, melhor, do abortamento. Houve um referendo, com os resultados conhecidos, apontando para uma lei moderada. Na campanha e até na noite da votação, apresentou-se como modelar a lei alemã.

Em ordem a uma decisão - e isso é tanto mais verdade quanto mais grave -, é de bom senso ter o máximo de informação possível. Ora, foi publicada recentemente em Diário da República a portaria que regulamenta a nova lei, e, quando se lê, pergunta-se o que leva o Estado, que deve proteger a vida, a ter receio de dar directamente mais informação à mulher que quer abortar. Porquê tanto receio no aconselhamento? Porque é que o esclarecimento sobre os apoios do Estado à maternidade e nomeadamente a possibilidade de adopção é remetido para folhetos?

Mas o que é intolerável mesmo é a isenção de taxas moderadoras para as mulheres que decidem abortar. Não é legítima a equiparação às grávidas e futuras mães, e é uma injustiça social, quando se pensa nos doentes que têm de pagá-las, sendo os mais pobres a pagar cada vez mais pelos serviços de saúde. Porque não há apoios nos problemas da infertilidade?

Afinal - e isto é o mais grave -, muita gente andou enganada: tinha sido dito que o referendo tinha como objectivo a despenalização, quando realmente a intenção parece ser liberalizar.

NOTA: É imoral que se obrigue ao pagamento de taxas moderadoras a deficientes, e neste caso às grávidas que pretendem dar filhos ao País para combater o envelhecimento da população e, ao mesmo tempo, se isente dessa taxa mulheres que, não querendo ser mães, são ignorantes e descuidadas ao ponto de não terem tomado medidas (das muitas existentes) para evitar a gravidez. Quanto a elas é preciso esclarecer que a gravidez não é uma doença e o abortamento é uma decisão delas tal como o implante de silicone ou a eliminação das gorduras e, para estas operações de plástica, não é dispensada a taxa moderadora. É lamentável que os governante se deixem arrastar pela tentação de esquecer a ética da sua missão de defender o bem comum e caiam em armadilhas difíceis de explicar em termos de equidade, de interesse nacional, de justiça social.

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