Transcrição de texto do TenGen Silvestre dos Santos, recebido por e-mail.
“QUE FUTURO PARA AS FORÇAS ARMADAS NO CENTENÁRIO DA REPÚBLICA”
A característica mais marcante das Forças Armadas nos regimes democráticos é que estão sob o controlo do poder político. Tanto o recurso à força militar para atingir objectivos políticos, como a designação dos próprios objectivos, são competências próprias dos Governos. Porém, as FFAA devem subordinação e obediência ao poder político legitima e democraticamente constituído, mas não lhe devem submissão. É à Nação que, em última análise, prestarão sempre contas.
Começando em 1910: As Forças Armadas pagaram bem caro o regime republicano: 200000 mobilizados para Angola, Moçambique e França, onde muitos ficaram e muitos voltaram em condições confrangedoras. Foi por isso que, em 1926, puseram fim aos estertores da 1.ª República, vencida pelas vicissitudes de um regime destroçado pelo Parlamento e pelos partidos.
Mas as coisas voltaram a não correr bem e as FFAA tiveram de intervir de novo!
Antes de 1974, os militares do quadro permanente eram olhados de soslaio, com desconfiança, e vistos por grande parte da população como o suporte de um regime arcaico, caduco, isolado e desacreditado internacionalmente. Debrucemo-nos, então, sobre a 3.ª República.
Ao levarem a cabo o 25 de Abril de 1974, as Forças Armadas (FFAA) recusaram-se a carregar mais tempo o ónus do prolongamento de um conflito que, apesar de controlado, à excepção da Guiné, destruiu uma geração de portugueses, não podia ser vencido militarmente, e demonstraram que estão ao serviço do País e não dos regimes ou dos partidos que o governam.
Estabeleceram uma série de restrições transitórias à classe política emergente, a fim de assegurar uma transição controlada para uma nova Constituição e para um novo regime político que dela saísse.
Nesse período, a maioria dos militares foi olhada com respeito e admiração, pois era unânime a ideia de que tinham devolvido a liberdade ao povo português e que tinham mantido todas as promessas feitas!
Importa por isso manter bem vivo na memória colectiva que o “25 de Abril” se deveu às Forças Armadas! A actual classe política deve às FFAA o exercício pleno da democracia representativa em liberdade, mas tem-se servido dessa mesma liberdade para as tratar como um parceiro menor e sem relevância na vida nacional, um mal com que se tem de viver, não as ouvindo nos assuntos que lhes respeitam, e retirando-lhes os seus direitos próprios estabelecidos em lei, sem que os chefes militares reajam com veemência.
As investidas contra as FFAA começaram logo quando, após o período de transição estipulado, o poder passou para as mãos dos partidos políticos.
A primeira investida aparece logo na elaboração da Constituição! Muitos se perguntam hoje porque razão vivemos num regime dito “semi-presidencial”, onde o Presidente da República tem tão poucos poderes, nomeadamente quanto às Forças Armadas, de que é o Comandante Supremo. É simples: à data da aprovação da Constituição, o Presidente da República era militar, e tornava-se imprescindível dar-lhe o mínimo de poderes possível e reduzi-los, até, como aconteceu mais tarde, durante a vigência do mandato de outro militar em idênticas funções.
A segunda investida surgiu em 1982 (VIII Governo Constitucional), através do Prof. Freitas do Amaral, com a Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) (Lei 29/82), que, como diz o Cor. David Martelo, “consubstancia um despropositado e humilhante ajuste de contas (…) de espírito revanchista…” (1)
Entretanto, a Lei nº 11/89, de 1 de Junho, “Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar”, associava alguns direitos ao leque vastíssimo de restrições e deveres a que, ainda hoje, os militares estão sujeitos.
A terceira investida, esta muito mais abrangente e profunda, veio nos XI e XII Governos do Prof. Cavaco Silva, fundamentalmente através do seu Ministro da Defesa Nacional (MDN), Dr. Fernando Nogueira: cortes orçamentais significativos; Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA - Lei n.º 111/91), Decretos-Lei de organização do MDN, EMGFA e Ramos das Forças Armadas (D.L. nºs 47 a 51/93); diminuição do período de serviço militar obrigatório para 4 meses (tornando-o praticamente desnecessário, porque insuficiente); afastamento progressivo das suas remunerações em relação às das categorias profissionais que vinham constituindo tradicionalmente as suas referências (professores, juízes, chefes e directores de serviços da administração pública); e Lei n.º 15/92 (“Lei dos Coronéis”), cujas condições de passagem directa à reforma se vieram a revelar um logro e um embuste. Perante esta situação, e face à preocupação e ao descontentamento dos militares, as infelizes declarações públicas do então Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), General Soares Carneiro, afirmando que “não era delegado sindical dos militares”, foram indubitavelmente cruciais, marcando um ponto determinante em todo este processo e prenunciando uma viragem em busca de outras soluções.
Se o mais alto Chefe Militar achava que não era seu dever defender os direitos dos seus subordinados, quem o faria? Este acontecimento iniciou, de facto, o processo de procura de outra via para a resolução dos problemas dos militares, visando, no essencial, inverter a tendência para o “plano inclinado” de que ainda hoje não saímos.
Para terminarem o mandato com chave de ouro, uma alteração à Lei n.º 29/82 (Lei nº 18/95) determinou que os Chefes de Estado-Maior passavam a ser escolhidos exclusivamente pelo poder político, por critérios políticos, sem interferência dos militares e sem ter em linha de conta as repercussões que tal critério iria ter na gestão das Forças Armadas. Pode afirmar-se que, conjuntamente, as infelizes declarações do então CEMGFA e a publicação da Lei n.º 18/95 deixaram as Forças Armadas “órfãs” de representantes formais que pudessem, como deviam, defender os direitos e os interesses dos subordinados, manter no âmbito militar aquilo que é estritamente militar e, acima de tudo, liderar pelo exemplo.
Posteriormente, foi publicada também a Lei Orgânica n.º 3/2001, de 29 de Agosto, “Lei do direito de associação profissional dos militares”
Quarta investida: A necessária regulamentação desta Lei aconteceu finalmente, através do D.L. 295/2007, passados quase seis anos, mas para cercear significativamente os direitos citados no Art.º 2.º da referida Lei. De facto:
- desrespeita as Leis de enquadramento (Leis Orgânicas 3 e 4/2001);
- desrespeita o Art.º 270.º da Constituição;
- configura uma tentativa de tratamento desigual e discriminatório para com os dirigentes associativos militares, em relação a outros corpos especiais do Estado.
Quinta investida: Em 2005, os militares viram os seus sistemas de saúde misturados num só, gerido por uma entidade sem condições organizativas nem vocação para o fazer, e as condições de assistência na doença e comparticipação nos medicamentos altamente agravadas. Assiste-se actualmente a uma nova investida para estrangular ainda mais o acesso dos militares e famílias à saúde!
Sexta investida: Em 2008 surgiram três Propostas de Lei que foram aprovadas pela Assembleia da República (AR) e que são de grande importância para as FFAA: as novas Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA), Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA) e Regulamento de Disciplina Militar (RDM). De acordo com a Lei, as entidades representativas dos militares deveriam ter participado nas reuniões dos Grupos de Trabalho que levaram à elaboração das propostas. Não o foram, não tendo a lei sido cumprida mais uma vez!
Sobre os dois diplomas organizativos direi apenas que surge um amontoado de confusões, de equívocos e de tendências equívocas de poder pessoal.
O RDM estava obsoleto! Com mais de 30 anos, necessitava urgentemente de ser actualizado. A Lei do Serviço Militar, a revisão do CJM e as Leis Orgânicas 3 e 4/2001, entre outras, assim o exigiam. Porém, tal não poderia nem deveria ser feito à revelia dos militares, “esquecendo” princípios fundamentais inscritos no documento de 1977, sem os quais a disciplina militar é despida de valores éticos fundamentais, mais parecendo um conjunto de normas administrativas destinadas a funcionários públicos e outros servidores do Estado. A disciplina é, para os militares, um “estado de espírito”, sendo inerente ao desempenho das funções. Não deve ser imposta, como parece transparecer deste novo documento.
Para aqueles que não têm uma memória muito curta, a intenção era clara e incontornável: Reduzir ao mínimo os “estragos” produzidos pela legislação publicada pelos Órgãos de Soberania até 2001, em termos dos direitos de associação sócio-profissional dos militares.
Fica claro, logo no início do documento, que se privilegiam os bajuladores e os carreiristas! O patriotismo, a lealdade, a honra e o cumprimento do dever não são referidos, pelo que devem ter deixado de fazer parte dos valores militares e de ser padrões éticos de comportamento!
Por que razão o Art.º 2.º (Bases da disciplina) do RDM de 1977, de facto o alicerce ético em que assenta todo o documento, nomeadamente os seus parágrafos 2 e 3, especialmente dirigidos aos padrões comportamentais dos chefes, foi simplesmente banido e erradicado do novo documento?
Deixaram os preceitos ali descritos de ser aplicáveis? Será que a nomeação dos Chefes Militares directamente pelo poder político os passou a dispensar desta conduta de exemplo? Não estarão aqueles preceitos em consonância com o Dever de Tutela estabelecido no Art.º 11.º do “Estatuto dos Militares das Forças Armadas”, anexo ao Decreto-Lei nº 236/99, republicado com o Decreto-Lei nº 197-A/2003, onde se estipula que “constitui dever do militar zelar pelos interesses dos seus subordinados e dar conhecimento, através da via hierárquica, dos problemas de que tenha conhecimento e àqueles digam respeito”?
Ao longo de 41 anos de serviço activo, aprendi e reaprendi vezes sem conta que “a autoridade delega-se, mas a responsabilidade NUNCA!” O maior problema das Forças Armadas, aquele que as mais tem afectado desde que o Sr. Gen. Soares Carneiro proferiu aquela fatídica frase, não tem sido a falta de disciplina, mas sim a falta de liderança e de exemplo das chefias! Tenho vindo a expressar publicamente esta opinião desde 2005.
É inconcebível que os Órgãos de Soberania tenham um discurso altamente elogioso e dignificante na partida de contingentes militares para tomarem parte em operações de manutenção de paz, onde vão ser um instrumento primordial da política externa do Estado, e outro discurso, diametralmente oposto, miserabilista e indigno, para consumo interno. Pura e simplesmente, não se podem ter Forças Armadas viradas para o século XXI com decisões de gestão política retrógradas e a roçar a ignorância, o autoritarismo e a impunidade, e agrilhoadas a restrições sócio-profissionais e a remunerações dos anos 1980’s. Não se podem ter FFAA baratas e mansas, que é aquilo que o poder político realmente quer!
A prometida reaproximação das retribuições dos militares às categorias de referência ficou-se pela promessa, nunca concretizada, do Dr. Jaime Gama, quando da sua fugaz passagem pelo Ministério da Defesa, em 1999. A classe política portuguesa tem vindo a baixar progressivamente de nível desde Abril de 1974. Os militares entregaram-lhe o poder e, em retribuição, ela tem vindo a minimizar e a humilhar sistemática e progressivamente os militares, degradando-lhes as condições de vida e a sua dignidade perante os concidadãos.
Pode pois concluir-se que não existe, por parte da generalidade da classe política dirigente, uma ideia sustentada sobre a estratégia de segurança e defesa nacionais, prevalecendo o casuísmo e a superficialidade, a sofreguidão mediática e o populismo eleitoralista (2).
Como diz o VAlm. Silva Ribeiro, a actuação dos órgãos do Estado faz crer que pretende que o militar jure defender a Pátria com o sacrifício da própria vida, enquanto a sua situação social e a da sua família se agrava continuamente, e que espera placidamente que o patriotismo tudo resolva, quando permite que se aprofundem gritantes desigualdades sociais entre membros das várias instituições que participam na acção estratégica do Estado (3).
A situação que se vive actualmente não augura nada de bom, vislumbram-se no horizonte sinais preocupantes de eventuais confrontações sociais sérias. O descontentamento grassa nos mais diversos sectores da sociedade, tendo-se a sensação latente que não existem alternativas credíveis dentro do quadro político vigente. Com esta Europa já vimos que não podemos contar! Só serve aos burocratas.
A classe política pensa hoje prioritariamente no que deve fazer para se manter no poder, e muito pouco no que pode fazer para resolver os problemas estruturais que assolam transversalmente o País. É formada quase exclusivamente nas juventudes partidárias (verdadeiros centros de emprego para militantes laboriosos, obedientes e com poucas ideias próprias) e, frequentemente, assume (i)responsabilidades políticas sem qualquer experiência de vida profissional e sem qualquer contacto com a realidade e com os problemas objectivos dos cidadãos, mas com uma ligeireza verdadeiramente inconsciente. Daí resulta a perigosa confusão de conceitos e a ignorância que se podem encontrar nos diplomas legais que referimos.
O nosso jovem e frágil sistema democrático está, na prática, a ser manipulado e dirigido por minorias poderosas, fanáticas e cheias de gula, protegendo-se no presente e sacrificando o futuro. As formações políticas digladiam-se dentro de um sistema que criou uma oligarquia arrogante que se alimenta do Estado, que desempenha essa função sem sentido de serviço e que rejeita à partida qualquer alternativa ao sistema.
Todos estão satisfeitos, governo e oposição, não lutam entre si, apenas representam teatralmente o espectáculo mediático de luta política para iludir o cidadão comum (4).
Hoje em dia, após cerca de 20 anos de alinhamento seguidista dos seus escalões hierárquicos mais elevados com o sistema político vigente, abandonando os seus subordinados à discricionariedade das “ventos” políticos, sempre contrários, as FFAA não merecem os líderes que lhes impuseram, têm de lutar pela sua própria sobrevivência, e provavelmente não serão já capazes de interiorizar suficientemente os valores que referi.
A classe política tem vindo sistematicamente a destruir os alicerces fundamentais das FFAA (com o acordo tácito dos Chefes Militares, no mínimo por omissão), mentindo, ludibriando, cometendo ilegalidades, despojando-as durante anos e anos da sua dignidade, castrando-as dos seus princípios éticos fundamentais e, mais recentemente, adulterando e corrompendo o conceito básico de disciplina militar, alicerçado no exemplo dos chefes, substituindo-o por outro, incoerente, discricionário e justicialista.
Ora, a natureza da missão das Forças Armadas (FFAA) exige dos seus elementos um compromisso profundo e uma adesão ilimitada aos valores e aos interesses nacionais, de onde sobressaem a segurança, o bem-estar e a justiça.
Esses valores e interesses são intangíveis, estão acima dos meros interesses dos partidos e dos grupos económico-financeiros, e culminam na defesa da Pátria, a todo o custo! O compromisso fundamental das FFAA é para com a Nação, não para com partidos ou para com governos.
Em nome dos valores referidos, em situações de crise profunda e agitação política e social graves, as FFAA têm o dever, a obrigação, de não deixar cair o poder na rua, porque elas emanam do Estado e são o derradeiro garante da sua independência e sobrevivência.
Porém, em minha opinião, já não estão preparadas para o fazer! Essa vai ser a grande agonia do nosso País! Por isso, caros camaradas, não devíamos estar a discutir “o futuro das FFAA no centenário da República”, mas sim ”o futuro da República no seu centenário”!
(1) DAVID MARTELO, “A espada de dois gumes”, Publicações Europa-América, 1999
(2) LOUREIRO DOS SANTOS, José A. – “Convulsões – Ano III da ‘guerra’ ao terrorismo – Reflexões sobre Estratégia IV”, Europa-América, Mem Martins, 2004.
(3)SILVA RIBEIRO, António – “Os desafios à organização, ao saber e à formação militar no século XXI”, Academia de Marinha, Lisboa, 2000.
(4) MARQUES BESSA, António (Professor do ISCSP) – http://jornalodiabo.blogs.sapo.pt/15099.html, 2009-08-27.
Lisboa, 23 de Junho de 2010.
Tenente-General Silvestre dos santos
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