Olhar para trás com saudosismo é inútil e desgastante, mas se olharmos com intenção de retirar lições úteis para definirmos linhas de rumo é indispensável e proveitoso. O tempo, se bem aproveitado, é uma grande scola. Transcrição de artigo identificado.
Tempo é uma coisa tramada
José Pacheco Pereira, Visão, 20090722 e Povo
“Seria uma grande irresponsabilidade construir estes estádios que depois não fossem utilizados” (José Sócrates, 1999)
Na Internet, com origem no You Tube e continuação nos blogues, circula uma entrevista dada ao programa Hermann99 por José Sócrates, então jovem governante em vésperas de chegar a Ministro. Toda a entrevista é interessante, mas esta parte é ainda mais interessante porque se percebe muita coisa sobre as características políticas de José Sócrates, então já com mais de quinze anos de política na JSD e no PS e dois anos de experiência governativa.
É. O tempo é uma coisa tramada. E uma das coisas em que a trama do tempo nos trama é quando percebemos que nada mudou no que dizemos, mesmo quando nada do que dizemos tem (teve) alguma coisa a ver com a realidade. O que impressiona nesta entrevista é ouvir Sócrates falar exactamente na mesma, usando as mesmas expressões, o mesmo tom enfático, as mesmas palavras, os mesmos argumentos, o mesmo apelo a que o nosso desejo corresponda ao dele, a que o acompanhemos, a mesma tensão discursiva, com que fala hoje.
Na altura falava dos estádios do Euro 2004, hoje fala do TGV ou do novo aeroporto ou das novas auto-estradas. E diz exactamente o mesmo, sem tirar nem por. Pode-se retirar-lhe a palavra “estádios” do discurso e colocar TGV, que tudo o resto podia ser hoje. A única gigantesca diferença é que nós sabemos que tudo aquilo que ele disse dos estádios não se verificou, nem de perto nem de longe. Pelo contrário: o programa dos estádios criou uma série de abortos vazios, que não servem para ninguém e no qual se enterraram milhões de euros que ainda hoje pesam muito significativamente nos orçamentos autárquicos e na despesa pública. E pior ainda: nada do que ele disse sobre as vantagens do projecto dos estádios se verificou pelas mesmas razões que os críticos então apontaram, desperdício, gigantismo, despesismo, confusão de prioridades, obsessão do betão, e que é o mesmo que hoje é dito pelos críticos do megalómano projecto de grandes obras públicas do governo. Ou seja, Sócrates foi um dos responsáveis de um desastre económico (e não só ele, também muita gente do PSD) que já estava anunciado em 1999 e que ele recusou reconhecer e preparava-se hoje, se não fosse travado pelo Presidente da República e pela derrota eleitoral nas europeias, para fazer o mesmo.
É. O tempo é uma coisa tramada. Aquilo que parecia em 1999 uma ode ao desenvolvimento baseado no futebol - em Aveiro a “maior zona de requalificação” do país, os estádios “muito sofisticados” “com três estúdios para televisão pelo menos“, “criar novas centralidades”, “novas oportunidades” etc., etc. - e que se repetiu a propósito de muita coisa, dos gadgets como o “Magalhães” a falhanços como as Cidades Digitais e a Via CTT, nos anos da maioria absoluta até desfalecer em Junho de 2009, hoje parece muito frágil. Quando o ouvíamos em 2005, 2006, 2007, 2008, a falar da “revolução” que os seus projectos de desenvolvimento iriam trazer ao país, deveríamos ter tido mais memória do passado deste governante, mas falhamos no escrutínio do que já então era possível ter e que se devia ter. Sócrates vai falar do mesmo modo na sua campanha eleitoral porque ele não sabe fazer de outra maneira. É por isso que é bom voltar a estes videos com dez anos para o perceber melhor.
É. O tempo é uma coisa tramada.
El País
Há 2 horas
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