O comum dos leitores não se apercebe dos fins pretendidos pelo jornalismo quando enfatiza um ou outro assunto, deixando de lado outros aparentemente mais relevantes para a vida do País, dos portugueses. O realce de uma notícia, uma alusão, uma citação, uma interrogação, uma suspeita, pode ser uma arma mortífera, ou pelo menos muito agressiva, embora, na aparência, pareça inocente. É a isso que o habilidoso jornalista aponta o dedo ao chamar a atenção para a forma como foram tratados três casos.
Sócrates, o primo e a Capadócia
DN. 090517. por Ferreira Fernandes
O melhor trabalho jornalístico português que vi nos últimos tempos, em todas as categorias, foi o do fotógrafo chinês Zhang Xiao Dong. Aconteceu ontem, no Expresso. A reportagem escrita esteve cargo de um bom repórter, Rui Gustavo, que foi à China encontrar o primo de Sócrates. O primo nada disse com interesse, porque o que teria interesse seria ele a comprometer o primo.
O que interessa - vou dar um exemplo para os leitores distraídos perceberem o que é hoje interesse jornalístico - seria Sócrates dizer no meio de uma viagem de Estado: "Vim à Capadócia porque era há muito um sonho da minha namorada vir à Capadócia." Como Sócrates não disse isso, esta frase não abriu telejornais. Talvez alguém tenha dito uma parecida, mas também não abriu telejornais, pois não? Sorte de quem tenha dito essa frase similar e possa - e ainda bem que pode - dizê-la sem escândalo.
Mas deixem-me voltar ao jornalismo de factos, à maneira de Zhang Xiao Dong. Segundo percebi, o repórter do Expresso foi para a China sem fotógrafo. Chegado ali, Rui Gustavo encontrou um, local, e pô-lo ao corrente: "Vou entrevistar um tipo português que está aqui a treinar kung fu. Ele é personagem de um escândalo de que todo o meu país fala." O fotógrafo chinês tranquilizou-o: "Compleendido." Não garanto que o diálogo tenha sido mesmo esse, nem tão-pouco a pronúncia. Mas o essencial passou-se assim.
Como o sei? É que eu também já fiz reportagens com bons repórteres fotográficos. E sei que estes trabalham da forma como Zhang Xiao Dong trabalhou. Sei como trabalhou Xiao, mesmo não estando lá, porque vi o resultado: as fotos. As fotos de ontem do Expresso são fruto de 10 por cento de talento e 90 de transpiração. A transpiração de um repórter fotográfico vem antes do clicar, vem do esforço para poder contar a história com fotos.
Um dia, na Angola que ainda se proclamava "trincheira firme do socialismo", eu e o meu camarada fotógrafo Joaquim Lobo descobrimos um rico (nesse tempo ele não era raro, era único). Eu fiz um longo texto sob longo título: "Ele é rico, quer ser mais e não tem vergonha." Mas tudo estava nas fotos do Joaquim Lobo: o milionário posando de pé sobre a cabina de um camião, com toda a frota por trás; o milionário, em casa, dedilhando teclas, com uma estatueta de Lenine em cima do piano... Parecia simples mas essas fotos foram arrancadas por horas de teimosia e persuasão.
Ontem, no Expresso - desde a capa, com a foto do primo de Sócrates, lutador de kung fu, em cima de pilares, à dele rezando no templo de Shaolin - vi esse humilde ofício de jornalismo, contando, não aldrabando. Leitor de jornais, senti-me lavado. Ah, se só se contassem histórias e o jornalismo não fosse instrumento de sei lá o quê...
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