quinta-feira, 15 de abril de 2010

Justiça perante decisões estranhas

Transcrição seguida de NOTA:

Da tragédia à comédia
CM. 15 Abril 2010. Por Rui Rangel, Juiz Desembargador

O Código de Execução de Penas, que acaba de entrar em vigor por vontade política exclusiva do Governo, faz-me lembrar a tragédia e comédia gregas, quando se interroga sobre as razões pelas quais a civilização grega sucumbiu ao contrapor-se a uma distinta maneira de conceber o homem, a justiça, o mundo e a vida.

A tragédia deste novo Código está na persistência do legislador que, por teimosia e por interesses pouco transparentes, insiste na desjudicialização da justiça, capturando actos que só podem ser praticados por um juiz, para entregar a órgãos administrativos de confiança política. A comédia (ainda que trágica), não sendo o legislador louco, só é suportável pelo riso que provoca, quando se atribui competência ao Director-Geral das Cadeias para decidir pela colocação de um recluso em regime aberto no exterior da prisão.

Este órgão administrativo, nomeado por confiança política, decide da liberdade de alguém condenado pela prática de crimes graves, designadamente os chamados crimes de sangue, sem restrição, sem custódia e sem qualquer controlo no exterior. Aquilo que era uma excepção, o regime aberto no exterior da cadeia sob controlo judicial, passa a regra, como um direito do condenado e, ainda por cima, por decisão administrativa. Ultrapassam-se os poderes e a decisão de dois juízes, o da condenação e o da execução, permitindo que a decisão que condenou o criminoso numa pena de vinte anos seja alterada, por via administrativa, logo que este tenha atingido um quarto da pena. Trata-se de mais uma medida inoportuna, considerando o momento conturbado que vive a justiça e a insegurança gerada pela reforma das leis penais que, com a modificação do regime da prisão preventiva, obrigou a libertar muitos detidos.

Quando se coloca um criminoso no regime aberto, no exterior da cadeia, dando-lhe liberdade para passar o dia fora, está tudo em jogo: a protecção da vítima, a manutenção da paz e da ordem social, os mecanismos de reintegração social. Como é que se pode entregar esta competência importante ao Director-Geral das Cadeias, que não tem sensibilidade, formação e um estatuto de independência e de isenção para apreciar estas matérias? E não se diga que esta decisão passa pelo crivo do MP para apreciar da sua legalidade.

É uma apreciação frouxa e sem grande relevo porque, em caso de discordância, o recurso não suspende os efeitos da decisão administrativa, acabando o preso por gozar automaticamente desta medida, podendo, se quiser, evadir-se de vez e ir a banhos, não com o Director, mas com a sua decisão. No limite, se for um colega de partido que esteja preso até dá jeito, passa a gozar de liberdade até ao fim da pena ou até poder beneficiar de liberdade condicional. E é também uma boa forma de gerir o excesso de população prisional de acordo com o orçamento disponível. Completa indignidade para o Estado de Direito e para a vítima e total humilhação para os Tribunais.

NOTA: Há quem receie o «Controlo do poder judicial pelo poder político?» mas parece que, além do controlo, há que temer a neutralização das decisões da Justiça, tornando esta numa actividade burocrática apenas «para inglês ver». Disto não poderá resultar benefício para a sociedade em geral.
Sendo a Justiça um dos pilares da sociedade, e um dos motivos actuais de maior preocupação dos cidadãos, mesmo para um leigo, isto parece extrema arrogância, abuso do poder, insensatez, falta de sentido de Estado, de ética, de respeito pelos cidadãos bem comportados e que desejam paz e segurança. Não parece aceitável que raciocínios financeiros possam levar a esta situação dramática, quando se desperdiça tanto dinheiro com remunerações «obscenas» a gestores públicos, e com tantos assessores inúteis (não impedem os repetidos erros do Governo que se vê obrigado a recuos frequentes).

5 comentários:

ALG disse...

Caro A. João Soares,

de facto, assiste-se a este desvario completo no mundo da Justiça com repercussão no sentimento, generalizado, de que já não garante a sua função institucional. A descrença é notória e neste caso concreto fica patente, embora não assumido politicamente, de que querem é diminuir a todo o custo a população prisional. Falham por completo as medidas de Prevenção Geral e Especial e Ressocialização é um mero conceito abstracto, apenas para discurso de ocasião. Existe um profundo descontentamento que se prende, entre outros aspectos, com o que considero ser uma autêntica aberração, as molduras penais irrisórias previstas pelo nosso ordenamento jurídico, principalmente nos crimes contra as pessoas.
As alterações cirúrgicas das Leis Penais já indicavam este caminho, pese embora o alarme social que vieram criar. Estamos a criar um ordenamento jurídico, onde prevaricar compensa, e que as vitimas são isso mesmo vitimas e sem garantia de lhes ser feita Justiça! Por este andar, ainda vamos ver publicado um "código" para as vítimas de crimes violentos, contemplando os deveres e a conduta a adoptar, algo do género:
i- Ser educado com os criminosos;
ii- Colaborar com todos os pedidos por eles efectuados;
iii- Não prejudicar, de modo algum, a sua actividade no decurso do crime;
iv- ......

Este sítio está cada vez mais, mal frequentado... definitivamente e temo que irremediavelmente sem possibilidade de reparação!

Cumprimentos

ALG disse...

Permita-me ainda a referência, dada a sua relevância no que concerne ao "estado a que isto chegou"a, para o seguinte link:

http://dn.sapo.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1540840

Claro que até eu já há muito que refiro isto mesmo, mas quem sou eu... se for preciso eu envio mais Cv´s.

Cumprimentos

A. João Soares disse...

Caro ALG,

Curvo-me perante a opinião de um especialista, um «connaisseur».
Mas, na minha posição de apenas cidadão interessado e observador, acho que o sistema de justiça está descoordenado, pois devia funcionar inteiramente sintonizado para o objectivo, a sua «função institucional» como bem diz, com os seus componentes desde o legislador até aos serviços prisionais, passando pelas polícias, a Judiciária e os tribunais.
Embora cada um destes sectores seja administrativamente independente dos outros, deve estar sintonizado de forma a somar efeitos e resultados e não reduzir a eficiência dos outros, criando, dessa forma, sinergias que contribuam para a maximização dos resultados em prol da segurança e do sentimento de calma e de confiança das populações.
Cabe ao poder político criar estruturas para tal funcionamento sinergético que motive todos os sectores a fazerem o melhor em benefício do resultado global, com a certeza de que os outros sectores não reduzem nem anulam os seus esforços.
Mas, infelizmente, os governantes têm se mostrado incapazes de coordenar seja o que for e de definir objectivos estratégicos aglutinadores das variadas actividades.
Começa por não haver objectivos nacionais definidos, os quais iriam permitir listar os interesses nacionais nos diversos sectores e, daí o trabalho em equipa, e o aparecimento natural de sinergias, isto é, de o resultado final ser superior à soma dos resultados das partes se agissem em separado sem espírito de equipa.

Mas, dada a «carreira» dos nossos políticos e a sua arrogância que impossibilita aprendizagem, nada melhor se pode esperar deles.

Um abraço
João

Anónimo disse...

Com vígaros como o anterior inteligente que dirigiu a pasta da Justiça (AlberCosta), que esperar?
Quanto ao juiz Rangel:
a)Esteve no padrão dos Descobrimentos, na apresentação da candidatura de Fernando Nobre a PR - bom sinal.
b)Afirmava há tempos numa TV, que os juízes estavam mal pagos, que deviam ganhar melhor - péssimo sinal.
BM

A. João Soares disse...

Caro BM,

A Justiça é sem dúvida um dos pilares da vida nacional. Deve merecer a confiança dos portugueses, o que agora não acontece. A incompetência dos políticos tem criado uma descoordenação gritante entre os vários subsistemas do aparelho global da Justiça, desde a actuação dos polícias até aos serviços prisionais, os quais não funcionam numa coordenação lógica, não havendo uma sequência de esforços para um objectivo único. Como o post sublinha há subsistemas que anulam o efeito do anterior ou impedem que o seguinte aja de forma correcta.
Isto passa-se em muitos sectores da vida nacional, porque os políticos, incapazes de estudar correctamente os problemas, actuam de forma pontual sob o efeito de PRESSÕES sectoriais e produzem mecanismos legais desconjuntados que precisam de correcções frequentes e nunca criam credibilidade.
Precisamos de homens que pensem menos nos votos e mais nos interesses nacionais.

Abraço
João