Após mais onze meses de trabalho duro e de poupança severa, o Sr. Alfredo (nome fictício) lançou-se à viagem de França para Trás-os-Montes a fim de passar um mês mal contado de merecidas férias na casinha que, há alguns anos, construiu com os francos que foi juntando, muitas vezes à custa da privação do cigarro, do café e de umas cervejas em companhia de amigos e conterrâneos.
A viagem foi longa e fatigante com a mulher e os filhos no curto espaço habitável, entre a bagagem para todo o tempo de férias e alguns presentes para a família, ao que se juntou o calor e a impaciência dos mais jovens.
Mas, normalmente, a um sacrifício segue-se o prazer que lhe serviu de justificação e, quando atravessaram a fronteira, agora quase imperceptível, e se sentiram na terra dos descendentes de Afonso Henriques, a sensação de alívio fez esquecer a dureza do percurso que já era passado.
A mulher, sempre cuidadosa, recomendou que não facilitasse e continuasse a conduzir com prudência, porque os acidentes podem acontecer até ao último momento da viagem. E é sabido que em Portugal se conduz com elevado risco, alguns sem carta, sem seguro do carro, com excesso de álcool, de droga, velocidade excessiva, curvas dadas fora da mão, etc
O Alfredo compreendeu e aceitou os avisos e assentiu que devia ser mais prudente e cauteloso do que na parte anterior da viagem, e foi com uma alegria muito saudável que, passado algum tempo, avistou lá longe as primeiras casas da sua terra, o seu destino de viagem, em Chaves, onde iriam tomar um banho refrescante e estender-se para recuperar a postura esquelética muito abalada durante tantas horas de corpo encarquilhado.
Mas tal alegria depressa desapareceu de forma inesperada, estranha, insólita. Não puderam entrar em casa, por falta de qualquer acesso. A sua casinha tão desejada, o seu refúgio tão almejado nos últimos dias, estava agora inacessível, lá no alto, no meio das nuvens, separada desta humilde família emigrante, trabalhadora, por mais de quatro metros por cima de um talude vertical que cortou qualquer possibilidade de acesso às pessoas, ao carro, às bagagens. Enfim, a família estava sem casa, na rua, embora tivessem sido pagos dentro dos prazos, os impostos e as contribuições.
O que se passou? Não foi um abatimento de terras, tectónico, geológico, mas um erro, talvez um crime, uma falta de respeito pelos cidadãos e suas propriedades, por parte de orates que ficam cegos para tudo, quando «pensam» no seu dinheiro e só nele. Para construírem uma urbanização, decidiram terraplanar o terreno e, naquele sítio, mais alto, cortaram às cegas tudo, incluindo o caminho de acesso à casa.
Na sua cegueira de autómatos accionaram os buldozers, as escavadoras e cortaram o terreno com frio rigor matemático. Entretanto, as pás-carregadoras e os camiões encarregaram-se de transportar os escombros para um local baixo, talvez uma linha de água onde acabarão por, em caso de chuva forte, originar inundações que causem prejuízos a outras vítimas da insensatez destes «engenheiros».
Um trabalhador que estava por ali, talvez mal pago, mas defensor do seu patrão, disse que estava tudo legal (parece político!) e aprovado pela Câmara, e que fosse queixar-se à Câmara. O Alfredo foi e deu com o nariz na porta fechada, pois era sábado, 2 de Agosto. Nem um piquete de urgência havia. Foi à Polícia que, como lhe competia, «tomou conta da ocorrência», isto é, escreveu num papel qualquer coisa a propósito. Mas ele continuou a olhar para a sua casa cá de baixo, sem dela se poder aproximar mais do que os quatro metros da altura do talude vertical.
Consta-se que agora o assunto já está entregue a advogado para ser resolvido pelo tribunal, mas entretanto ou desiste das férias e vai para França sem desejo de cá regressar ou gasta um dinheirão em pensão, ou incomoda uns familiares que tenham uma casa mais espaçosa. E esperará anos até que o meritíssimo tribunal decida de sua justiça!
Perante este caso insólito, fica a dúvida se se estava perante um facto real ou um episódio anedótico de uma comunidade de doidos, acéfalos com acesso abusivo a máquinas que não sabem utilizar, sem respeito por qualquer ser vivo, mesmo que se trate de uma família de humanos.
Mesmo que houvesse necessidade de prejudicar provisoriamente o acesso à casa, tal não devia ser feito sem antes falar com o proprietário, directamente ou através de familiares ou amigos.
País de anedotas em que, por um lado, os ambientalistas lutam contra estradas, pontes e barragens que possam prejudicar o habitat de animais ou plantas, mas por outro lado, com o consentimento ou indiferença de um Câmara Municipal, priva-se uma família laboriosa, com as suas contas em dia de poder entrar em sua casa.
Seres humanos são menos protegidos do que animais e plantas, que usufruem da defesa acrisolada dos ambientalistas.
El País
Há 58 minutos
4 comentários:
Se esta história viesse de um país do 3º mundo eu não me surpreendia, mas de um país, dito, civilizado é uma vergonha. No mínimo!
Caro AP,
É mesmo uma vergonha. Como é possível???
Abraço
João
Amigo A. João Soares
Estas situações, porque esta não é única, são o resultado do trabalho dos desumanos tecnocratas que dirigem o país que para eles é habitado por números e não por pessoas, são "computadores" que só entendem "bites" (sim ou não, zero ou um) o povo diz são gente do "oito ou oitenta" oito para os "outros" oitenta para "eles".
Com os "choques tecnológicos" a tendência é para o aumento destas situações.
Um abraço
Carlos Rebola
Caro Carlos Rebola,
Já tinha aqui deixado uma resposta mas pelos vistos perdeu-se.
Há realmente uma «mentalidade» de autómato muito generalizada, uma recusa a raciocinar, a olhar para as circunstâncias que tornam cada caso diferente de todos os outros, uma falta de respeito pelos seus companheiros no mundo. Só olham para o próprio umbigo e actuam completamente às cegas.
Mesmo que um documento os obrigasse a cortar o acesso à casa, não deviam executar a ordem sem chamar a atenção de quem a deu, e se o patrão insistisse, deviam recusar-se a cumprir.
O mundo está a tornar-se num manicómio de doentes irrecuperáveis.
Abraço
João
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