Nem sempre é dada a devida atenção ao que se passa na área militar e muitas vezes os políticos, como no início de 1974, se deixam seduzir com a ilusão da representatividade da «brigada do reumático». Esta não era constituída por velhos reformados, esclerosados, como o nome pode fazer supor, mas sim pelos detentores de cargors para os quais tinham sido nomeados pelo Poder e que procuravam mostrar-se merecedores da confiança que neles foi depositada e gratidão pela benesse recebida, mas que, por esse efeito, ignoravam o seu papel de representantes e legítimos defensores dos homens sob o seu comando. O resultado foi a má informação prestada ao Poder político e terem sido ultrapassados, por uma força real que, do ponto de vista institucional, foi, sem dúvida, um acto grave de indisciplina, mas que do ponto de vista nacional foi considerada heróica. Tais situações podem repetir-se, de uma ou outra forma, pois a vacina que as possa impedir não assenta no autoritarismo insensível, cego e surdo.
Por contribuir para uma visão mais atenta destes problemas, transcreve-se um artigo do General Loureiro dos Santos, que apesar de não merecer a concordância total dos seus pares, deve ser meditado por conter dados de análise com muito interesse.
Cuidado com a cólera das Legiões (Raspeguy)
INSTITUIÇÃO MILITAR: SINAIS PREOCUPANTES
Artigo da autoria do General Loureiro dos Santos
Público, 25 de Outubro de 2008.
Trinta e três anos depois do 25 de Novembro de 1975, assistimos novamente a sinais preocupantes com origem nos militares. Sinais que revelam profunda indignação dos cidadãos em uniforme de uma democracia para cuja fundação foram absolutamente determinantes.
Já há muito tempo que alguns chefes das associações profissionais dos militares e outros militares na reserva ou na reforma vêm chamando a atenção da opinião pública para a enorme insatisfação que grassa nas fileiras, insatisfação que abrange todos quantos têm o compromisso de estar prontos a sacrificar a vida para defenderem a sua Pátria, desde os mais baixos aos mais elevados graus da hierarquia.
Os motivos de descontentamento relacionam-se com o modo como têm sido descurados os direitos que o Estado lhes outorga formalmente como compensação das obrigações que lhes exige, mas lhes recusa de facto, direitos resultantes das especificidades próprias das missões que justificam a existência de um sistema militar ao serviço de Portugal e que constam da Lei sobre a condição militar.
As razões de indignação envolvem:
1) seu enquadramento incorrecto na grelha remuneratória dos vários servidores públicos (onde são descriminados muito negativamente, em comparação com as profissões da administração pública consideradas equivalentes);
2) deficiências no apoio de saúde que lhes é devido, bem como aos seus familiares, de cujo bem-estar depende em elevado grau o ânimo para o cumprimento da missão ou seja o seu moral;
3) modo como são tratados pelos responsáveis políticos os camaradas que já se encontram na situação de reserva e reforma (nos quais se revêem quando atingirem a mesma situação);
4) falta da assistência a que têm direito os militares que ficaram deficientes ao serviço do país (particularmente durante a guerra), o que também lhes pode vir a acontecer;
5) desconsideração com que estão a ser tratados os veteranos combatentes cujas condições económicas, sociais e/ou de saúde se degradaram;
6) insuficiência dos orçamentos militares correntes, que impedem o funcionamento normal das unidades, serviços e órgãos, com o risco da existência de falhas com impacte, mesmo que indirecto, na operacionalidade desejada;
7) baixa prioridade conferida ao investimento na obtenção e substituição de equipamento e armamento de primeira necessidade, para garantir a participação das unidades nacionais destacadas que operam ao lado de contingentes aliados em idênticas condições, e delongas inexplicáveis na sua materialização quando autorizadas.
Até agora, tem-se ouvido a voz dos mais experientes (e mais prudentes), que já se encontram fora do serviço activo, alertando para as consequências que estas situações poderão produzir. Assim como dos líderes associativos, pressionados pelos sócios que os elegeram seus representantes.
Sabe-se que os chefes militares, como lhes compete, têm alertado para estes problemas com a atitude de respeito que os caracteriza, mas também com a veemência que traduz forte preocupação.
Só que têm emergido ultimamente indicações da existência de sentimentos de agravo de muitos jovens em uniforme – praças, sargentos e oficiais – há muito conhecidas da hierarquia de topo, que, não há menos tempo, delas se têm feito eco junto dos políticos com capacidade de os resolver. Sentimentos que podem acentuar-se, se vierem a entender como insuficientes e injustas as mudanças que estão a ser estudadas nos suplementos remuneratórios, quando concretizadas.
Este facto constitui uma circunstância nova que introduz uma alteração qualitativa na situação de insatisfação dos militares que até agora tem sido referida, caracterizada por os mais jovens, normalmente mais idealistas, não cuidarem muito das condições que lhes permitam o acesso justo a bens materiais e a tratamento condigno.
Costuma afirmar-se, e bem, que a nossa democracia, reforçada pela presença de Portugal na União Europeia, se tornou numa garantia de que os golpes militares não regressam. O que terá contribuído para o confortável sossego dos responsáveis políticos perante as vozes de alerta que se têm ouvido acerca do que preocupa os militares. E terá mesmo justificado a sua apatia, não agindo em conformidade com o dever de tratar os militares com o respeito e a dignidade que merecem, em consonância com as funções que o país lhes atribui nas situações mais difíceis e perigosas. E tendo em atenção as condições de limitação de direitos e de exigência reforçada de obrigações que caracterizam a sua qualidade de servidores da Pátria em situações limite, o que os impede de declarar publicamente o desagrado que sentem.
Presumo que a postura generalizada dos militares é uma sólida disposição, melhor, determinação de não perturbar a normalidade democrática, já que é insuspeita a sua devoção ao regime, para cuja implantação tiveram contribuição decisiva. Mas a angústia provocada por situações de dificuldade, associada ao sentimento de que são objecto de injustiça relativamente à forma como são tratados profissionais da administração pública a que são equiparados, cuja persistência lhes parece absolutamente incompreensível, poderá conduzir a actos de desespero, capazes de gerar consequências de gravidade, que julgaríamos completamente impossíveis de voltar a acontecer.
Até agora têm falado e agido os mais velhos, logo os mais conhecedores, os mais compreensivos, os mais cautelosos. Mas atenção aos jovens. Os mais jovens são os mais generosos de todos nós, mas são também os mais sensíveis a injustiças, os mais corajosos e destemidos, os mais puros nas suas intenções, os mais temerários (muitas vezes imprudentes).
Os altos responsáveis nacionais deverão ter em muita atenção o crescente número de militares jovens que assumem a consciência de quem são os responsáveis pelas injustiças a que estão a ser sujeitos e pela situação precária em que se encontra a sua vida privada e social (como a das respectivas famílias), assim como pelos perigos que poderão decorrer para o cabal cumprimento das missões que são chamados a cumprir.
Para prevenir situações de perturbação social, que podem ser muito inconvenientes, nomeadamente na forma como somos vistos pelos nossos parceiros da União Europeia e da NATO, bem como pelos membros da CPLP, torna-se da maior importância que os nossos líderes, a começar pelo Presidente da República e o Primeiro-Ministro, leiam com atenção os sinais que saem da Instituição Militar e ajam, sem demora, em conformidade. Convém não nos julgarmos blindados contra situações desagradáveis que possam vir a surgir, nem que insistamos em pensar que "acontecimentos (funestos) do passado não voltam a acontecer".
Atento ao evoluir da situação e comprometido com a democracia, como os militares da minha geração, sinto o dever de fazer este alerta aos primeiros responsáveis do regime, cuja instauração tanto custou. Leiam os sinais preocupantes que estão a vir à superfície relativamente ao que sente a Instituição Militar, dêem atenção aos chefes militares e corrijam as injustiças.
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Sinais da área militar - 8
Publicada por A. João Soares à(s) 09:14
Etiquetas: combatentes, militares
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
8 comentários:
Quanta verdade aqui está descrita! Só os "cegos" não querem ver.... Mas quando a "castanha" rebentar quero ver a quem aproveita tal situação!!!! Lembrem-se o que aconteceu no "aproveitamento" do 25 de Abril!!!!!
O artigo parece uma declaração de intenções. Será?
Não há fumo sem fogo...
Caro Luís,
Para quem vive com os olhos e os ouvidos abertos as verdades nunca são chocantes nem inesperadas. Estão à vista de toda a gente apesar das precauções dos militares, muito reprimidos pela disciplina. Perante essa repressão, é preciso avaliar muito bem os pequenos sinais e dar-lhes a devida proporção.
O medo dos militares é de tal ordem que há perto de dois anos, um general na reforma disse-me por e-mail que visitou este blog mas que só deixaria um comentário quando julgasse oportuno. Durante todo este tempo decorrido, ainda não veio o momento adequado!!! E é uma pessoa que escreve com em fino estilo e até tem livros publicados!
E o certo é que comentar é dizer algo em apoio ou em reprovação da ideia expressa, ajudando a ver melhor o tema, de forma mais esclarecida.
Um abraço
João
Caro AP,
Acho que as intenções imediatas são chamar atenção aos responsáveis para olharem com seriedade para a situação dos militares. Já aqui transcrevi opiniões semelhantes do mesmo autor, de Garcia Leandro e de outros militares conhecidos do publico.
Claro que, se a situação se prolongar sem provas de que os governantes se interessam pela resolução dos problemas, é imprevisível o que possa acontecer.
Ninguém com o cérebro em boas condições pode pôr as mãos no fogo.
Abraço
João
Caro João Soares
agradeço o envio das duas info's.
Como passei uma vista de olhos pelo artigo do general LS no Público, dispenso-me de o reler já.
Associado ao relatado jantar da classe, está a dar alguma celeuma Ainda bem.
No entanto, o que mais relevo da sua publicação no Miradouro, são precisamente as suas palavras, a sua introdução.
Lapidares, na mouche.
Ontem como hoje...
Um abraço
BMonteiro
Caro B Monteiro,
É estranho que este post e outros que têm abordado o mesmo tema tenham poucos comentários. Será que não há militares? Há mas têm medo de se manifestar. São daqueles que exigem liberdade de expressão mas não se servem dela. Querem um brinquedo, mas se lho dão não o utilizam. Qual será a razão porque não mostram a sua opinião sobre um tema que é a eles, mais do que aos outros, que interessa????
Isto é muito significativo sobre o País que somos. Tire as conclusões que quiser sobre a população que habita este rectângulo!!!
E esse silêncio é aproveitado pelos governos para os explorar.
É de espantar que ninguém esclareça os jornalistas que dizem que os militares estão zangados por lhes terem retirado regalias, quando na verdade o Governo tem deixado de cumprir a sua obrigação de dar a compensação por terem sido retirados aos militares as compensações pelas restrições no uso de direitos constitucionais comuns a todos os cidadãos. Dizer que os militares são funcionários públicos como os outros, carece de explicação sobre a disponibilidade permanente, a ausência de horário de trabalho, as acções arriscadas, o perigo de vida, a falta de apoios no caso de ferimento ou deficiência permanente, como é o caso de muitos ex-combatentes.
Será comparável a vida de um militar à de um manga de alpaca das Finanças???
Abraço
João
Caro João Soares
há outro ou outros problemas.
Não poucas vezes e ainda no activo, fiz por dar a conhecer a alguns Cap/Of Sup´s no Cmd Instr e ESPE/Amadora, algumas iniciativas de mérito da AOFA - conferências no auditório do IASFA em Oeiras por ex.
Primavam por não comparecer.
Numa sala de oficiais onde passo com alguma frequência, perante dois diários (DN e Público) e um deportivo, talvez não esteja errado com as minhas impressões da leitura preferida da maioria dos que lhes pegam: o desportivo!
Entretanto e com as facilidades de obtenção de qualificações académicas civis, o que fazem presentemente muitos dos quadros, of e sarg no activo? Um trabalho/emprego nas FA, uma segunda ocupação profissional no meio civil - duplo emprego. Outra forma de fazer pela vida.
Abraço
B. Monteiro
Caro B. Monteiro,
Pela forma como as coisas estão a passar-se, é inevitável a degradação da qualidade dos militares. Já aqui aventei a hipótese de em breve deixar de haver voluntários a não ser os que vivem miseravelmente nas áreas suburbanas, do género Quinta da Fonte, ou imigrantes que prefiram a tropa às obras públicas ou à mendicidade. Mas mesmo esses já têm economias paralelas que lhes garantem fazer fortuna, com riscos inferiores aos dos militares.
Vai longe o tempo em que as Forças Armadas constituíam atracção para os mais dotados.
Os que, por distracção, se encontram nelas, sentem necessidade de deitar mão a uns biscates que encontrarem na actividade civil a fim de poderem criar os filhos com alguma qualidade, que o vencimento lhes não permite.
Faltam estímulos de toda a ordem para se valorizarem escolarmente e se sentirem confiantes na expressão de opinião e na abordagem de temas que se inserem na vida do País e se relacionam com a Defesa, na sua definição alargada.
Um abraço
João
Enviar um comentário