quinta-feira, 24 de julho de 2008

Retrato da administração pública

Um texto escrito por um professor de filosofia que escreve semanalmente para o jornal O Torrejano, que merece ser lido com uita atenção e espírito crítico.
Tudo o que ele diz, é tristemente verdadeiro...

O atestado médico
por José Ricardo Costa

Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância.

Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.

Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.

Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la?

Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestado médico.

Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir deste momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante.

Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI.

O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente.

O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.

Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.

Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.

Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.

Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados.
Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o 'ET', que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção
fictícia, provavelmente mesmo desde D. Afonso Henriques, que Deus me perdoe.

A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados.

Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal.

Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.

Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho.

Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.

Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.

Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o mundo.
Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.
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Urge mudar este estado de coisas.
Está na sua mão, na minha e na daqueles a que lerem este texto!

8 comentários:

Anónimo disse...

Para Portugal mudar temos nós de ser os primeiros a faze-lo! Infelizmente acabaram com as aulas de Educação Civica e assim para o "comum dos mortais" é mais fácil criticar que proceder com lisura no seu dia a dia! Temos que acabar com este "País de faz de conta" mas, para isso temos de ser todos nós a ser verdadeiros e obrigar quem nos (des)governa também a se-lo! É difícil mas há que começar a exigir de todos nós e dos nossos (des)governantes tal procedimento e, deixemo-nos de fechar os olhos ao "faz de conta"!

A. João Soares disse...

Caro Luís,
Isto chegou a um ponto de difícil inversão de marcha.
Imagina que aparecem dois ou três médicos que só passam atestados verdadeiros, depois de terem dados suficientes para assinarem tal papel que fazem sob a sua honra e comprometendo a Faculdade que os formou. Além de perderem os clientes, poderiam de ver comprometidos os vários tachos de que usufruem. Estarão para isso?
Com o director da escola iria passar-se coisa parecida e na avaliação de desempenho seria muito penalizado além de o ser pelos professores do partido do governo.
Temos de sair deste buraco, mas não será fácil. A vigarice está entranhada no íntimo dos portugueses.

Abraço
João

Sei que existes disse...

É mesmo como dizes: tudo isto é tristemente verdadeiro!...
E, infelizmente, julgo que não irá haver melhoras nos próximos tempos.Beijo grande

A. João Soares disse...

Cara Amiga Sei que Existes,
De uma sociedade que perdeu todos os valores éticos, morais e sociais, não se pode esperar grande melhoria, a não ser que haja uma catástrofe que faça tremer todo o sistema e as consciências das pessoas.
Sem um forte abalo, não cai tanta fruta podre que enche a árvore.
Beijos
João

Anónimo disse...

A podridão acabará quando vier um furacão que limpe isto tudo e de uma vez só!!! É difícil mas acabará por acontecer!!!

A. João Soares disse...

Luís,
«É difícil mas acabará por acontecer», sem dúvida. E ocõrrerá sem os visados darem por isso. E depois tudo se resolverá sem haver quem se arrisque a defender os «ditadores». Só será desejável que antes seja feito um planeamento cuidadoso da forma como depois será a administração, para não acontecer outro Caos como o do PREC. É preciso mudar, mas para um regime mais são, mais democrático com gente honesta, séria e dedicada a Portugal, isto é, ao bem-estar dos portugueses, sem criar guetos de favorecidos pela Nomenklatura.
Um abraço
João

Anónimo disse...

Realmente não se podia esperar melhor de um país que começou com alguém a bater na mãe!

A. João Soares disse...

Mas já tivemos mais de oito séculos para superarmos essa herança pouco lisonjeira. devíamos fazer um esforço orientados pelos melhores exemplos dos Países mais evoluídos.
Abraço
A. João Soares