sábado, 20 de setembro de 2008

O argumento da honra

Texto de Baptista-Bastos, escritor e jornalista, no DN de 17 do corrente.

A ética republicana iluminava as virtudes do carácter e a grandeza dos princípios. As revoluções, idealmente, não são, apenas, alterações económicas e substituições de regimes. Transportam a ideia feliz de modificar as mentalidades. Essa mistura de sonho e ingenuidade nunca se resolveu. A esperança no nascimento do "homem novo" não é exclusiva dos bolcheviques. O homem das revoluções jamais abandonou o ideal de alterar o curso da História e de modelar os seus semelhantes à imagem estremecida das suas aspirações.

É uma ambição desmedida? Melhor do que ninguém, respondeu Sebastião da Gama:
"Pelo sonho é que vamos
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Partimos. Vamos. Somos."
A ética republicana combatia a sociedade do dinheiro, da superstição religiosa, da submissão, e pedia aos cidadãos que fossem instrumentos de liberdade. As "raízes vivas", de que falou Basílio Teles.

Fomos perdendo, sem sobressalto nem indignação, a matriz ética da República. De vez em quando, releio as páginas que narram os desassossegados dezasseis anos que durou o novo regime, obstinadamente defendido por muitos a quem se impunha a consciência do compromisso. Esses, entre o aplauso e o assobio, percorreram o caminho que vai do silêncio à perseguição, do exílio ao assassínio político. Morreram pobres. São os heróis de uma história que se dissipou, porque o fascismo impediu nos fosse contada, nas exactas dimensões das suas luzes e das suas sombras.

Relembrei estes episódios ao tomar conhecimento, pelo semanário Sol, de que Ramalho Eanes prescindira dos retroactivos a que tinha direito, relativos à reforma como general, nunca por ele recebidos. A importância ascende a um milhão e trezentos mil euros. É um assunto cujos contornos conformam uma pequena vindicta política. Em 1984, foi criada uma lei "impedindo que o vencimento de um presidente da República fosse acumulado com quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência que aufiram do Estado." O chefe do Governo era Soares; o chefe do Estado, Ramalho Eanes, que, naturalmente, promulgou a lei.

O absurdo era escandaloso. Qualquer outro funcionário poderia somar reformas. Menos Eanes. Catorze anos depois, a discrepância foi corrigida. Propuseram ao ex-Presidente o recebimento dos retroactivos. Recusou. Eu não esperaria outra coisa deste homem, cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum. Ele reabilita a tradição de integridade de que, geralmente, a I República foi exemplo. Num país onde certas pensões de reforma são pornográficas, e os vencimentos de gestores" atingem o grau da afronta; onde súbitos enriquecimentos configuram uma afronta e a ganância criou o seu próprio vocabulário - a recusa de Eanes orgulha aqueles que ainda acreditam no argumento da honra.

NOTA: Se estas palavras tivessem sido escritas por um militar, diriam que era corporativismo, «eles a puxarem a brasa à sua sardinha». Bem haja Baptista Bastos por ter enfatizado a honra deste ilustre português que serviu Portugal sem querer servir-se. Bem haja Sr. General (porque não Marechal?) António Ramalho Eanes por esta lição que devia ser bem compreendida por tantos corruptos que enriquecem ilegitimamente, à custa de todos nós, como sublinhou o Eng João Cravinho. A sua honra e patriotismo levaram-no a colocar os interesses nacionais sempre muito acima dos próprios, como agora, mais uma vez evidencia.

10 comentários:

Pata Negra disse...

Por estas e por outras se Eanes se recandidatasse não faria a figura que fez Soares. Infelizmente, que se conheça, é um caso único!
Aceitam-se novos exemplos!

Um abraço republicano

A. João Soares disse...

Caro Pata Negra,
É como diz. Desejam-se novos exemplos. Portugal dos nossos egrégios avós merece muitos casos como este, mas infelizmente, cada um olha para o seu próprio umbigo e despreza o País.
Políticos em geral e governantes em particular só pensam nos próprios interesses, para ganharem jus a um «tacho dourado» e a «reformas milionárias» acumuladas.
Infelizmente, a honra de Eanes é única
Abraço
João

Anónimo disse...

Amigo João:
Li este artigo noutro blog e pensei logo em ti, pois achei que era daqueles que gostas de tratar pelas qualidades e principios morais que nos elevam neste marasmo miserável em que vivemos. E assim aconteceu!
Penso que há alguns HOMENS (infelizmente poucos) que deveriam voltar à Ribalta Política para que esta se purificasse e nos pudesse elevar aos lugares que deveríamos merecer e não a esta miséria em que vivemos! Este HOMEM pertence a uma Velha Guarda em que os Princípios e a Ética eram o seu apanágio e foi nessa Escola de Virtudes que muitos Portugueses, como nós, aprenderam a viver e como tal não se podem rever nesta "Bagunça" a que imprópriamente chamam democracia. Há que reabilitar PORTUGAL para bem dos nossos filhos e netos!!!!

A. João Soares disse...

Caro Luís,
Parece haver unanimidade nas palavras referentes a este grande vulto português dos tempos modernos. O valor das condecorações de actos meritórios que, sem dúvida, possui mas de que não faz alarde é inferior à sua presença digna e impoluta, à imagem de honradez e dignidade de todos conhecida.
Porém, a sociedade anónima deixa-se arrastar facilmente por ídolos de barro sem conteúdo moral, sem verdadeiro valor cívico, em vez de olhar para os reais valores de honradez, respeito pelo próximo e amor ao País.
Houve um facto que convém recordar: Quando se falava em Eanes se voltar a candidatar, passado intervalo constitucional, ouvi na TV um comentador iluminado, referir-se aos potenciais candidatos, e, em relação a Eanes, dizer que não era hipótese a colocar por ser militar! Gostava que algum cérebro mais ou menos em bom estado de funcionamento me explicasse, de que profissões devem sair os PR e quais as profissões a eliminar dessa lista! Que saiba, a Constituição não apoia tal discriminação.
Quanto a não ser marechal, como me interrogo na NOTA, há benesses que, com o uso imponderado, perdem o significado que deviam ter e o marechalato é uma delas, depois dos dois últimos casos.
Eanes, com a sua tese de doutoramento e o seu comportamento impoluto e patriótico dá lições à totalidade dos nossos políticos. É um exemplo de honorabilidade, como Baptista Bastos salienta.
Um abraço
A. João Soares

Anónimo disse...

Siempre me pareció hombre digno de admiración el General Antonio Ramalho Eanes

ANTONIO DELGADO disse...

Exemplos como os do sr. General Ramalho Eanes são verdadeiros confortos para quem acredita, tal como eu acredita, no ARGUMENTO DA HONRA. Abandonou a politico pela porta grande e é nessa dimensão que vive e será sempre recordado. Não é comum verem-se homens desta dimensão, sobretudo nos dias de hoje quando a norma é, entre os politicos, praticas contrárias ao do sr. general

Cordialmente
António Delgado

A. João Soares disse...

Caro Filomeno,
Ramalho Eanes é uma figura que, com o tempo, aumenta de dimensão e se impõe à admiração de todas as pessoas de boa vontade. É um exemplo que devia ser seguido por todos os políticos de carácter.
Cumprimentos
João

A. João Soares disse...

Caro António Delgado,
É realmente um exemplo de nobreza de carácter. Nenhum político se lhe compara, porque todos menorizam os interesses do País em relação aos interesses próprios, traduzidos em ambição poder. Ele tem como objectivo tornar Portugal melhor e nunca se desviou desse farol, dessa missão, nunca sobrepondo a essa finalidade sublime os mesquinhos interesses pessoais, as intrigas, as traições aos seus concorrentes.
Norteia a sua vida por valores de honra e dignidade.
Abraço
João

Anónimo disse...

Coloque-se no poder quem realmente deu o corpo ao manifesto na Revolução, e não quem por puro oportunismo se sentou na cadeira do poder, e talvez as coisas fossem diferentes...
Eu não estava presente, pois nasci depois, mas pelo que leio e ouço talvez fosse a melhor solução.

A. João Soares disse...

Caro AP,
Os «capitães de Abril» eram defensores da honra segundo a ética militar, cheios de patriotismo e de ilusões e, salvo o Ernesto Melo Antunes e talvez mais um ou dois, não tinham saber e sensibilidade política. Não quiseram formar uma ditadura militar como acontece na maior parte das revoluções. A ditadura sabe-se como começa mas ignora-se como acaba e eles não quiseram criar uma nova ditadura. Quem se aproveitou foram as forças políticas já organizadas, que já tinham agentes infiltrados nas Forças Armadas. Antes que os militares estabelecessem um «modus vivendi» adequado à transição, o povo começou a ser bombardeado por palavras de ordem demolidoras de todo e qualquer tipo de ordem e surgiu o PREC - processo revolucionário em curso, cujas consequências se mantêm, por não terem restabelecidos princípios cívicos e éticos indispensáveis.
O nome de Ramalho Eanes começou a ser conhecido dos portugueses no Verão quente de 1975, com a «carta dos nove» e depois com a forma como foi enfrentado o 25 de Novembro. Estava rodeado dos melhores portugueses da época.
Mas, provavelmente, o receio do uso da força foi uma fraqueza do Conselho da Revolução que foi explorada por aqueles que até hoje têm desgovernado o País, em variados aspectos.
Um abraço
João