De Fernando Paula Vicente Maj-General da FAP
O descontentamento das Forças Armadas, traduzido essencialmente em manifestações de rua e intervenções de carácter diverso na comunicação social, a que o País tem vindo a assistir nestes anos mais recentes, é um assunto demasiado complexo para poder ser tratado, de uma forma inteligente, num mero comentário de jornal que me é pedido, o qual não pode visar outra coisa que não seja o esclarecimento da Nação sobre o que está realmente em causa. Ele traduz muito mais que uma reivindicação de direitos e de subsídios, e radica profundamente no sistemático atentado à condição militar. E, nesse sentido, para ser justo, tenho que começar por afirmar que ambas as partes Forças Armadas (FA) e sucessivos Governos constitucionais têm, nesta matéria, grossas culpas no cartório.
Começando pelas FA, é preciso que se diga sem rodeios que elas tudo fizeram para que uma significativa parte da Nação lhes tenha perdido o respeito que tradicionalmente lhes era devotado. Ao executarem, por razões corporativas, um golpe de Estado, permitiram que ele se transformasse numa das mais anárquicas revoluções do século passado.
Liderada por comunistas, socialistas e toda a gama de oportunistas, nestes se incluindo muitíssimos militares — recorde-se aqui o sinistro Conselho da Revolução — tudo aquilo que a revolução conseguiu foi destruir as estruturas do Estado, por em prática um plano de nacionalizações cujo verdadeiro impacto está ainda por quantificar e conceder, ilegitimamente até do ponto de vista constitucional, a prematura independência às Províncias Ultramarinas, com as consequências que todos conhecemos e que, lá, se cifraram pela destruição quase completa das muitas infra-estruturas existentes e por centenas de milhares de mortos.
Qualquer país digno desse nome, já teria nesta altura investigado essa página negra da nossa História e atribuído responsabilidades a muitos — militares e civis — que ainda por aí abundam armados em heróis. Portugal não precisava de um 25 de Abril para se democratizar: a sua incontornável entrada para a CEE teria obrigado o País a democratizar-se, da mesma forma que, para tentar ser aceite na União Europeia, a Turquia procede actualmente à sua democratização interna.
Para além disso e mais importante ainda, a revolução destruiu os padrões morais em que funcionava a sociedade portuguesa, criando as condições para tornar Portugal no mais corrupto e mais atrasado país da Europa comunitária neste início do século XXI. Tudo isso, ainda que indirectamente, graças às Forças Armadas.
Ainda sobre os militares, com excepção da Força Aérea que, imediatamente após a independência do nosso Ultramar, reduziu os seus efectivos de 20 mil para cerca de 10 mil homens (a sua dimensão normal para o território do continente), modernizou a sua gestão e, tanto quanto possível, também o seu dispositivo, as FA, sem liderança política competente, foram deixadas absorver milhares de milhões de contos em programas que pouco tinham a ver com o quadro estratégico em que presumivelmente elas poderiam vir a actuar, isto porque os respectivos chefes de Estado-Maior, defendendo cada um os interesses corporativos do seu Ramo, foram incapazes de se por de acordo sobre aquilo que era verdadeiramente o interesse nacional.
Cabe aqui dizer que têm também graves culpas nesta matéria todos os Ministros da Defesa e todos os deputados que integraram as sucessivas Comissões Parlamentares de Defesa, que permitiram tudo isso sem oposição que tenha sido visível.
Faltou aos militares a honestidade da visão do interesse nacional e a Nação pagou por isso um altíssimo preço.
O desgaste da imagem das FA foi-se acentuando até que, de há uns anos a esta parte e seguros de que, finalmente, não há mais espaço para golpes militares — a insinuação, por outras palavras, feita pelo Gen. Loureiro dos Santos, de que a democracia portuguesa está em risco é leviana — os políticos têm estado a fazer às FA aquilo que bem lhes apetece, nomeadamente, retirando aos chefes militares quase todas as competências administrativas e outras; não actualizando as grelhas salariais em correspondência com aquilo que eram os tradicionalmente equivalentes níveis de remuneração da função pública; legislando sobre outras remunerações a militares e, em completo desrespeito pela lei, recusando o respectivo pagamento (neste momento, a dívida é gigantesca); destruindo os subsistemas de saúde militares e substituindo-os por um novo (ADM) que há mais de um ano não paga aos respectivos utentes qualquer comparticipação; destruindo os fundamentos da justiça militar e da condição militar e querendo transformar os militares em meros funcionários públicos.
Os militares, porque estatutariamente não têm poder reivindicativo, têm estado a pagar, mais do que qualquer outra classe, o preço da crise.
Por tudo o que antecede, constata-se que, actualmente, os militares têm vergonha de andar fardados na rua e isso, num país democrático, é um péssimo indicador social, que faz ricochete na imagem dos Governos e da própria Nação. Claro que, como recentemente aconteceu, quando Portugal admite que um desertor se candidate à Presidência da República, sabendo-se que, se ele for eleito, será também o Comandante Supremo das Forças Armadas, está tudo dito, vale tudo!
Os políticos perderam finalmente o medo — e, como tal, também o respeito — pelos militares e estes estão cheios de razões para trazer ao conhecimento da Nação o seu descontentamento. Uma entidade insuspeita, o Senhor D. Januário Torgal Ferreira, Bispo das Forças Armadas, não se coibiu de, muito recentemente, fazer publicamente eco desse descontentamento em termos que não deixaram margem para dúvida sobre a sua legitimidade.
As FA não são um corpo de funcionários públicos. Não têm horário de trabalho das 9 às 18: se necessário, trabalham 24 horas por dia, nas condições mais adversas, inaceitáveis para os funcionários públicos, sem direito a receber horas extraordinárias. Servem a Nação e juram solenemente por ela dar a vida, onde necessário, se necessário.
Não têm sindicatos. Abdicam, enquanto em serviço activo, do direito à liberdade de expressão. A Instituição Militar é um dos pilares da segurança nacional e da sobrevivência da Nação e um dos mais importantes vectores da política externa do Estado.
Quando é hostilizada pelo Governo da Nação, fatalmente o que está errado não são as FA com os seus defeitos e virtudes, o que ressalta é que ao Governo falta noção de Estado.
E isso tem um preço político, nacional e internacional. O Governo, os Chefes Militares e o próprio Presidente da República na sua função de Comandante Supremo, que tão calado tem estado no quadro da «cooperação estratégica» que pauta o seu desempenho, deviam todos ter vergonha!
Fernando Paula Vicente Maj-General da FAP (Reformado)
NOTA: Este texto que me chegou por e-mails de várias proveniências foi publicado no «Diabo» de 11 do corrente, e foi inserido num comentário do autor no post de José Miguel Júdice com o título «a quartelada ameaçada» no Blog SEDES onde já se encontrava um comentário meu. Publico-o aqui, porque a forma como me chegou denuncia interesse de muita gente, e convém que problemas nacionais desta relevância sejam esclarecidos para que cada um forme a sua opinião sem se sentir arrastado por dicas aventureiras, mal fundamentadas.
O meu comentário no referido blog foi o seguinte:
Sr. Dr. Miguel Júdice,
De memória, recordo os tempos de 1976 em que gostei de ler a forma como o Sr. redigiu a defesa de um administrador de um banco com sede na Avenida Fontes Pereira de Melo, da qual me foi mostrada uma fotocópia por um indivíduo descontente da forma como 25 de Abril foi aproveitado, como Fernando Vouga refere num comentários atrás.
Aproveito para felicitar este pela forma como se opôs ao seu post, esclarecendo a metodologia que deve ser utilizada para tomar decisões tão importantes. E cumprimento o Dr. Campos e Cunha, que conheci quando ele era uma pequena criança, e gostei que se tivesse referido desta forma ao seu pai, com quem tive o prazer de trabalhar por três vezes, sendo a última em Belém, quando ele era chefe de gabinete e eu seu adjunto.
Acho que o Dr. Júdice foi demasiado arrojado na forma como levantou esta polémica e na maneira como se expressou em respostas a alguns comentários. Sem dúvida, que os números que apresenta mostram uma grande desproporção entre quadros e praças. As Forças Armadas, como todas as instituições, exigem frequentes ajustamentos, revisões e reformas. Porém, elas têm que estar preparadas para uma eventual mobilização geral. Oxalá ela nunca tenha que ocorrer, mas não pode ser colocada de lado. No entanto, acabado o Império, os efectivos globais podem ser reduzidos, de forma ponderada e sensata. Um coisa são pontos de pormenor e outras são aspectos de concepção.
Quando diz que para a nossa defesa seria suficiente «apenas uma guarda costeira e um grupo de tropas de elite», concordo com o argumento de Campos e Cunha quando diz que «isso seria muito mais do que hoje temos nas nossas FA, seja em equipamento, seja em homens, seja em recursos financeiros». Também há quem diga que a nossa dimensão, as nossas dificuldades, a nossa presença na UE, entre outros factores não justificam o que gastamos e ainda menos um exército de ocupação do território, pensado para um tipo de guerra que não enfrentaremos e que se enfrentarmos também não seria vencido com esse tipo de estrutura». Mas ou queremos defender o território ou não. Não podemos esperar que a UE nos defenda. E quem é a UE? Não somos nós a UE, na nossa quota parte? Pretendem que sejamos subsidiodependentes ao extremo de sermos pedintes da UE, sua colónia? A UE envia forças militares para várias partes do mundo e Portugal tem colaborado, colocando-se no seu papel de Estado membro. Como membros da UE cumpre-nos participar na vida da União e não apenas sermos mendigos, estado exíguo, colónia.
Já reparou que as missões mais significativas das FA têm sido efectuadas em cumprimento de decisões da UE e da NATO? Acha que estas instituições ficariam satisfeitas se nós enviássemos polícias ou GNR com bastão para actuar ao lado dos seus militares bem instruídos, equipados e armados, com o que existe de melhor na indústria militar? Isso, só por si, já será um factor a considerar antes de analisar a sua polémica tese. Mas há também a defesa do espaço marítimo, das pescas, do espaço aéreo. Pensou nisso?
Mas, de qualquer forma, o seu post foi útil pela polémica que levantou nos visitantes mais atentos. Pena é que os generais se sintam amarrados pela vetusta «servidão militar» e não tenham vindo aqui esclarecer estes temas. Mas eles valem o que valem!
Não quero terminar sem dizer algo acerca da afirmação do Dr. Campos e Cunha «Penso e defendo que as Forças Armadas devem estar privadas de certos exercícios de direitos fundamentais: liberdade de expressão em muitas matérias, participação política activa, greve, etc. Em contrapartida devem ter também um tratamento especial de um corpo que tem estas circunstâncias excepcionais e difíceis.» Efectivamente, quando o Governo hoje se refere à «condição militar» perde uma boa oportunidade de estar calado. A «condição militar», como muito bem diz, exige restrições aos militares nos direitos, liberdades e garantias constitucionais dos cidadãos, pelo que o Estado os beneficiava com compensações como contrapartida estatal. Ora, este Governo tem retirado essas compensações, tendendo a considerar os militares como vulgares funcionários públicos. Logo, não é moral, nem talvez legal, querer exigir que a outra parte desse «acordo» cumpra a sua sujeição a tais restrições. Sendo tratados como funcionários públicos, ou pior do que muitos destes, não lhes deve ser negado o direito a associação sindical, a manifestação, greve, etc.
Creio que aquilo que mais fere os sentimentos dos militares é não ser devidamente apreciado pelos governantes, a sua devoção à Pátria, com total e permanente disponibilidade e aceitação de riscos que vão até à própria vida. Nenhum funcionário sabe o que isso é.
Se quiserem decidir extinguir as Forças Armadas, não façam com a leviandade com que decidem noutras questões, procurem analisar o problema com uma metodologia semelhante à descrita algures por Fernando Vouga, que preconiza começar pela «identificação dos objectivos nacionais dando prioridade aos que, por serem vitais, justificam o emprego da força. Depois, há que identificar quais serão as ameaças que, reais ou hipotéticas, imediatas ou futuras, se configuram contra os nossos objectivos/interesses. A seguir, definem-se as estratégias (defesa, dissuasão, resistência passiva, passagem à guerrilha, etc.). Por fim, calcula-se o volume e tipo de forças (permanentes e a mobilizar) necessárias para a estratégia escolhida». Se seguirem este caminho, tenham sempre presente que se trata de PORTUGL e não se limitem ou condicionem por tricas partidárias, ou fantasmas de ódios, vinganças ou medos irracionais.
Cumprimentos
A. João Soares
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
O descontentamento militar
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3 comentários:
O PESO DA BOTA MILITAR...
ÚTIL NA MONA DE ALGUNS!
Recebido por e-mail de Alô PORTUGAL em 081111. 23:56
Quando algum escriba "bota" no papel alguns pensamentos ditados pelos auspícios do polimento que pretendem dar às "botas" dos patrões da comunicação social dita escrita... acerta sempre na
"mouche", ou um bocadinho ao lado, mas sem expressão de maior na finalidade pretendida.
Depois, quando há alguns jornalistas que pretendem mostrar serviço, dizem-se coisas sem nexo, apenas e tão só porque se não gosta de Militares ou porque se está a fazer o jogo partidário de quem tem a responsabilidade por essas coisas da Comunicação Social.
No Jornal de Notícias do Dia de Todos os Santos, o1 de Novembro, talvez porque não tivesse muito que fazer, o senhor Director resolveu falar da "Tropa", do General Loureiro dos Santos, do venerável Primeiro Ministro, do General Ramalho Eanes, etc...etc...etc...
Foi nesse escrito, subordinado ao título "O PESO DA BOTA MILITAR", que me apercebi que o antigo Chefe do Estado Maior do Exército, um prudente e sério analista militar, no dizer do senhor Director, terá responsabilizado Sócrates pela não resolução de alguns problemas dos Militares, especialmente o sistema remuneratório, o pagamento de pensões, o sistema de saúde dos Militares e famílias, além de afirmar que dizer ainda que o Governo não pode protelar este problema para as calendas, sobre risco de "os Militares mais jovens poderem vir a tomar atitudes irreflectidas." E fala depois o ilustre Director, no facto de ter sido uma questão corporativa de difícil resolução que terá levado os jovens militares dos anos 70 do século passado a tomarem a atitude conducente ao 25 de Abril., alegando que a atitude dos jovens Militares de Abril terá sido entendida como uma atitude irreflectida por parte dos Militares mais velhos.
Como está fora da realidade das coisas o senhor Director do JN! Certamente os Jornalistas não têm um sistema de saúde como o dos Militares, que está em absoluta rotura, como pode ser constatado por quem dos serviços médicos precisa. Fazem-se consultas com tempos de espera incomportáveis, não se recebem comparticipações médicas da ADM desde há muito tempo. A ADSE sempre vai cumprindo o seu desiderato, mas a ADM... não tem dinheiro, não paga! Eu tive de ser operado cá fora e pagar tudo do meu bolso, porque nos Hospitais Militares... chegou-se ao desplante de ter de ir para a Porta d'Armas da Unidade onde está sediado um dos Hospitais, à chuva e ao frio, para se conseguir o especial favor de uma consulta. Isto apenas porque alguém que está doente, é já velho e reformado, sem interesse para o cabal desempenho da Missão cometida à Arma a que o mesmo pertence e serviu com dedicação.
No que às pensões respeita, paga-se o que se considera obrigatório, mas a degradação é notória.. O senhor Director do JN sabe o que é trabalhar 24 horas por dia sem horas extraordinárias? Sabe o que é dar a vida pelo País se necessário, como se compromete no Juramento de Bandeira? Não é como no jornal! "Não me pagam o que quero vou embora, pois a concorrência paga!"
Os Militares não querem benefícios para além dos que a lei lhe consigna, mas não querem ser os últimos a ouvir porque são disciplinados! Temos o direito a falar... à indignação... a protestar através das Associações representativas, já que não nos é possível o Sindicato que defenda os nossos interesses, ou a greve! Não é isso que pretendemos, mas sim justiça! Mas a justiça que temos é a instauração de processos disciplinares a esmo, apenas porque se clama por essa mesma justiça. Que moral têm muitos dos que agora dão ferroadas nos Militares, quando fugiam para essa Europa, que lhes concedia trabalho... mas não lhes dava asilo político para não ficarem de mal com o Ti'António da Calçada da Estrela. Outros desertavam, para não baterem com os costados na guerra... sendo alguns deles, presentemente, dos mais assanhados destruidores dos direitos dos Militares de agora... e dos de antigamente. Não será que nos estão a fazer pagar a factura pelo facto de haverem estado em desterro europeu?
Lembre-se sempre desta verdade: O SENHOR E MUITOS DOS QUE FALAM OU ESCREVEM CONTRA OS MILITARES, VIRAM-SE LIVRES DO PESO DA BOTA MILITAR PORQUE HOUVERAM MILITARES QUE PUSERAM TERMO À VOSSA HUMILHAÇÃO COMO CIDADÃOS! ATÉ ESSE SERVIÇO LHES DEVEM, TAL COMO DEVEM A DEMOCRACIA E A LIBERDADE!
Tenho pena que continuem a existir cães que sempre terão apetência para morder a mão que lhes dá de comer! E aqui em Portugal isso é por demais evidente, mesmo com leis que pretendem controlar os cães perigosos
Victor Elias
FORÇAS ARMADAS – HÁ UM FUTURO?
(Recebido por e-mail)
É necessário insistirmos em que a força militar, por conformismo inerente à sua própria natureza, não se reformará por si própria. É um assunto de Estado, o primeiro dentre todos que lhe dizem respeito.
Charles de Gaulle
Entre Junho de 1991 e Setembro de 1994, quando era ministro da Defesa do governo do Prof. Cavaco Silva o Dr. Fernando Nogueira, as Forças Armadas foram objecto de uma profunda reforma, que, entre outras vertentes, incidiu drasticamente na redução do número de oficiais e sargentos do QP. Nessa época, vivendo-se um período que hoje podemos classificar de “vacas gordas”, não se invocava, como agora, qualquer crise em curso, mas tão-só a indispensável racionalização dos meios e o necessário redimensionamento das FA. Parecia, portanto, que o poder político achava que ainda se justificava a existência de FA.
Todavia, enquanto para a opinião pública se fazia passar esta compreensível mensagem, no mesmo cenário de abundância que então se vivia, havia já alguns anos que o poder político iniciara os cortes na retribuição dos militares das FA. No quadro que se segue, comparando a evolução dos vencimentos-base de quatro categorias de servidores do Estado, poderá constatar-se como o tratamento de desfavor ia já bem lançado.
Enquanto isto se passava, a Instituição Militar tinha um comportamento sereno e os chefes militares não podiam queixar-se do ruído produzido por associações profissionais de militares (APM), porque elas ainda não existiam. A tropa estava disciplinada e muda e os chefes, provavelmente, estariam a desenvolver o melhor dos seus esforços no sentido de obter para os seus subordinados as recompensas que a mais elementar justiça impunha – isto, claro, sempre no pressuposto de que se justificava a existência de FA em Portugal. Todavia, o resultado estava à vista. No meio da maior serenidade, o estatuto retributivo dos militares continuava em queda.
Perante a mais que patente incapacidade das chefias militares para resolver o problema, foram-se afirmando as APM, as quais, obviamente, não podiam desempenhar as suas missões nos mesmos moldes cordatos e submissos dos CEM’s. Parece que ainda há quem não entenda esta verdade elementar: no preciso momento em que se constituíram as APM, ruiu uma parte substancial do prestígio dos chefes, os quais deixaram de representar os militares junto do poder político, passando a ser vistos como representantes do poder político junto dos militares. Não se questiona, evidentemente, a representatividade que mantêm no tocante às FA enquanto Instituição que cumpre missões.
A última década foi já bastante marcada pela crescente visibilidade das APM. Mas essa visibilidade tem sido, mesmo assim, de frequência muito moderada. Quer isto dizer que chegam a decorrer vários meses entre duas “campanhas” consecutivas. No intervalo dessas “campanhas”, o país e o poder político esquecem os militares. Ninguém se lembra de aproveitar esses tempos de acalmia para discutir serenamente a situação das FA, dos militares e, até – PORQUE NÃO? – se se justifica a existência das próprias FA. Ora, uma tal atitude – do governo, da sociedade, dos media – só vêm demonstrar que, em Portugal, se não se “agitar” de algum modo o cenário castrense, ninguém quer saber da sua existência. O pior é que, quando esses momentos de agitação ocorrem, a discussão que se segue não é feita sobre as razões da mesma, mas sim sobre a sua forma. Analisando este estranho fenómeno, somos obrigados a concluir que a questão já não é apenas a de “ninguém querer saber”, passando a ser também a de não quererem que se saiba.
Diga-se, em abono da verdade, que esta postura nem é apanágio exclusivo da sociedade civil. Também se manifesta entre número apreciável de militares. Só que, neste caso – exemplificando muito bem as contradições existentes em muitos espíritos –, mesmo entre os militares que se sentem claramente abandonados pela nação, verificamos que predominam as censuras à forma como as questões da retribuição são expostas na praça pública, acabando, invariavelmente, por se desligarem do debate sobre o conteúdo. Ando há vários anos à espera que algum destes devotados camaradas se digne sugerir um método que, no maior respeito pela democracia e pela melhor tradição militar, resolva o delicado problema que resulta do poder político pretender ter militares simultaneamente baratos e mansos.
Assim, não faz sentido que se critique a «mediatização» dos problemas militares, porque a ausência dessa mediatização constituiu uma das traves mestras do esquecimento a que as Forças Armadas têm sido votadas. Não faz sentido que se defenda publicamente, como há anos fez um CEM, que «aqueles que na procura da dignidade e prestígio esquecem a sua condição militar não são dignos do prestígio que pretendem alcançar», porque, manifestamente, o «esquecimento da condição militar» não foi obra desses militares mas sim do poder político, com o qual a maioria dos chefes militares têm convivido com a duvidosa «serenidade» que tanto gostam de recomendar aos seus subordinados.
Deve reconhecer-se que, relativamente às FA e aos militares, a cegueira da sociedade não é total. Aqui e além, fazem-se ouvir vozes atentas e sensíveis que descodificam muito bem os pecados que o poder político vem cometendo. E não precisamos de lançar mão de exemplos recentes, porque os problemas vêm de longe e perdem-se no tempo. Em editorial do «Expresso», de 30 de Março de 1997, escrevia, a propósito, o seu director: «Constituindo, durante décadas, um dos pilares da Pátria, a tropa tem vindo a tornar-se uma instituição periférica, inteiramente subordinada ao poder civil, aparentemente destituída de voz própria. A perda de importância dos militares é tão notória que se torna mesmo legítimo perguntar se o seu descontentamento valerá uma manchete.» Na mesma data, escrevia Diogo Pires Aurélio, no Diário de Notícias: «Salvo raras e honrosas excepções, a cultura que tem predominado entre a classe política a respeito das questões militares resume-se a dois objectivos «estratégicos»: manter em sossego as casernas; gastar com elas o estritamente necessário (...) desde que se deu o «regresso aos quartéis» as questões militares dir-se-ia terem sido reduzidas, na melhor das hipóteses, a um «mal necessário», do qual se fala apenas uma vez por ano e a título de alínea penosa e prosaicamente inscrita no Orçamento de Estado.»
Vejamos, agora, em que cenário se encontravam os militares portugueses nas vésperas da entrada em funções do governo presidido pelo 1.º ministro José Sócrates.
Como pano de fundo, dominava a questão de uma prometida reaproximação das retribuições dos militares às categorias de referência (V. Quadro). Essa promessa, nunca cumprida, fora adiantada, em 1999, pelo então ministro da Defesa Dr. Jaime Gama, curiosamente no seguimento de uma bem sucedida acção de mediatização das questões militares, levada a cabo pelas APM. Estava-se, repito, num cenário de promessa de melhoria de condições, o que equivale a dizer que o poder político reconheceu a situação de desfavor em que os militares se encontravam. Com a chegada do governo actual, entrou um novo cenário – o da crise declarada e o da necessidade de “apertar o cinto”. Este “aperto”, para haver moral, teria que ser sentido por todos. Vai daí, os militares também o iam sentir, e de que maneira.
Mas é precisamente aqui que entra em cena uma falsa questão moral, isto é, no período de “vacas gordas”, enquanto os demais engordavam, os militares emagreciam...porque sim! No período de “vacas magras”, os militares devem sujeitar-se às consequentes restrições, porque não são mais do que os restantes cidadãos!
Para agravar tudo isto – não execução da promessa de melhoria e perda de benefícios devidos à crise –, o poder político deu em não cumprir leis por ele próprio produzidas e nem aquilo que a lei estipula paga aos militares. Uma dívida de milhões de euros em diversas vertentes das retribuições, reembolsos de despesas com a saúde, subsídios de reinserção ao pessoal não permanente, etc., não parecem perturbar minimamente o poder político, tão-pouco merecendo uma reprovação que de longe se assemelhe às que são feitas à forma como os militares se manifestam. Resumindo, o descalabro moral que se abateu sobre os militares das FA teve, em sucessão, estas cinco fases:
1. Queda no estatuto retributivo face aos outros servidores do Estado
2. Promessa de melhoria não cumprida
3. Perda de direitos e níveis de retribuição
4. Não cumprimento de leis – dívida pecuniária
5. Recusa do direito à indignação
Uma nação que trata assim os seus militares tem de perguntar-se para que é que precisa de Forças Armadas. Se já não se coloca a necessidade de alguém morrer pela pátria, então deixa de se justificar a existência de Forças Armadas. Ainda recentemente, em artigo no Público de 7 de Novembro, o Dr. José Miguel Júdice falava de «tropas ociosas» e aflorava uma tese sua, segundo a qual «o Exército e a Força Aérea seriam dispensáveis, mantendo-se apenas uma guarda costeira, uma força de intervenção rápida, forças militarizadas e de segurança e meia dúzia de oficiais generais». Eis aqui uma proposta que, num esforço de boa-vontade, vamos admitir ser tão sensata como o alerta protagonizado há poucas semanas pelo general Loureiro dos Santos. Entre uma e outro, importa encontrar uma saída para este momentoso problema. O estado de desmoralização das FA fere-as de morte e torna-as impróprias para as missões que lhe estão constitucionalmente impostas. Urge, por conseguinte, acabar com esta situação imoral.
Será um exagero comparar a situação actual com a que se viveu nas vésperas do 28 de Maio de 1926. Ainda bem! O perigo está quando os alertas deixam de parecer despropositados. Nessas alturas, normalmente, já não resolvem nada.
David Martelo
Coronel Ref.º
Na cerimónia de abertura do ano lectivo na Escola Naval, o Chefe do Estado falou após 15 dias de agitação nas Forças Armadas e entre outras afirmações disse: "é preciso ter sempre presente a especificidade da carreira militar, daquilo que se chama a condição militar. E, dessa condição militar, fazem parte sacrifícios, renúncias, exigências especiais que são colocadas aos militares. A carreira militar não pode ser confundida com qualquer outra carreira da Administração Pública".
É um alerta para o Governo distraído.
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