quinta-feira, 12 de junho de 2008

Recordação de crise antiga

Transcrição de texto de Manuela recebido por e-mail, que também a mim fez recordar o racionamento do tempo da II Guerra Mundial e dos carros a gasogénio (vantagens de ser velho!)

Regresso ao passado

Hoje, tive a noção exacta do que sentiram as gerações que passaram por um racionamento em produtos de "primeiríssima" necessidade…

Lembro-me das histórias que me contavam sempre que não queria comer. Eram contadas com alguma mágoa, (para me fazerem comer), mas também com um misto de saudosismo pela solidariedade demonstrada pela vizinhança ou amigos, e nas quais entrava quase sempre uma personagem: "um rebuçado".

O "sr." rebuçado fez as minhas delícias de infância. Imaginar o meu avô com os bolsos cheios de rebuçados (1 tostão dava para vinte), no dia em ia à taberna jogar uma cartada e voltava a cavalo numa mula, fazia-me sorrir. Até mesmo rir, como no dia em que a mula se lembrou de dar pinotes e ele caiu, passando uma hora, às escuras, a "apalpar" rebuçados no carreiro de terra.

Mas… a verdade é que, naquelas histórias, o desejado "rebuçado" nunca foi comido ou "chupado", dissolvido na boca lentamente e com prazer. Antes pelo contrário, era logo"derretido", como por magia, assim que caía numa caneca de café de cevada.

Foi assim que eu descobri as virtudes ou as desvantagens do adoçante. Se o temos, abusamos dele ou, até, substituímo-lo por uma "migalha" adocicada, que me amargou na boca quando, glutona curiosa, lhe quis sentir o sabor. Se não existe, lá diz o ditado, " a necessidade é mestra", e usa-se o que se pode para, neste caso concreto, enganar a boca, ou mesmo o café.

Foi com estes pensamentos que cheguei a casa, carregada de farinha e, claro, de açúcar (não vá o diabo tecê-las), mas sem a carne e/ou o peixe nem, tão pouco, uma erva verdinha, até podia ser verde-seco, para acompanhar.

As prateleiras destas secções estavam completamente vazias. Vazias, como reza o meu dicionário, ainda sem acordo ortográfico. Não me lembro de alguma vez ter visto a imagem desoladora de um armazém despido da sua função! Mas não de área de consumo. Os "zombies", assim me pareceram as pessoas, puxando um cestinho vazio com rodas, passeavam-se com ar desolado ..(ou assustado?) pelos corredores e chegavam à menina da caixa com enlatados, arroz, massa e ovos, muitos ovos, não vão as galinhas entrar também em reivindicações.

Provavelmente não entram elas, mas os seus criadores, com a falta que sentem de rações para as alimentar, ou ainda, os galos, que a continuarem sem comer, entram em greve reprodutiva e o ciclo termina….

Assim como terminou o meu dia, com farinha, açúcar e o carro parado à porta, na reserva. As estações de serviço esgotaram às 2 da tarde.

Será desta que começo a andar de bicicleta para ir trabalhar? Não me estou a ver sobre um skate, nem sobre patins como as meninas dos hipermercados.

Consciente estou, que é mesmo necessário abandonar o vício da dependência. Já a psicologia o diz e a história recente o corrobora. Alterar modos de vida e comportamentos, será a solução.

Hoje, apeteceu-me voltar aos tempos do meu avô, retomar uma agricultura também ela sem dependência, a não ser a da Natureza, saudável e sempre pronta a devolver a atenção que se lhe dá. Recordei as minhas férias de menina, junto à ribeira a dar pedacinhos de pão aos patos, que às vezes iam parar dentro de uma caçarola de barro, para meu grande desgosto. Das couves que ajudava a cortar na horta para dar aos coelhos e que me entretinha a ver roer; do leite quente fervido, acabado de ser ordenhado e que me faziam beber, mas que eu detestava porque não estava dentro de um pacote!

Por alguma razão fiz hoje este "Regresso ao Passado 2" e não pode ter sido apenas por causa das prateleiras vazias de um supermercado e de uns quantos "zombies" caras pálidas, ou ainda, da hipótese de me ver sobre um skate para ir trabalhar.

Não, penso que a razão principal é ter tido maior consciência dos erros em que temos todos vivido….

Manuela

4 comentários:

Paula Raposo disse...

Um texto de alerta. Muito bom.

Henrique Monteiro disse...

Ora aí está uma descrição feliz daquilo que muitos de nós viveu e certamente nos espera. Tenho um amigo, septuagenário que me diz constantemente: Olhe amigo, não lhe dou dez anos, para que volte a ver os nossos campos todos cultivados! Não sei se é uma profecia, mas fico ansioso para que isso aconteça.

Um abraço.

A. João Soares disse...

Cara pula,
A sua expressão «muito bom» vem aumentar o mistério, acerca deste senhora, de alto poder de raciocínio, que me caiu aqui de repente, com a sua luz ofuscante, iluminadora!. Não creio que seja nem a Manuela F Leite, nem a Manuela M Guedes, porque escreve com notável isenção e elevação.
Beijos
João

A. João Soares disse...

Caro Sifrónio,
Essa previsão para os próximos 10 anos não é caçoada! Também tenho esse pressentimento. E já aqui deixei a pergunta: até quando se manterá a União Europeia?
Tudo o que inicia, um dia acabará. E os países da UE vêem vivendo em banho-maria, sem definirem uma rota segura para o continente, contemporizando com uns e com os contrários, sempre em posição de fraqueza, sem criar uma posição de prestígio, sem ser árbitro respeitado (Zimbabwe, Palestina/Israel, Líbano, Irão, Myanmar, Darfur, Quénia, etc.
A nossa agricultura e a pesca, foram muito prejudicadas pela UE e ficou em risco a nossa auto-suficiência em caso de crise. É preciso que os nossos governantes abram os olhos para as realidades do País.
Abraço
A. João Soares