Da antiga Rodésia do Sul chega-nos um exemplo de dignidade, de sentido de Estado, de dedicação à população do País, sentimentos que se sobrepõem à ambição do poder que é natural e compreensível num político.
O líder do Movimento para a Mudança Democrática, oposição no Zimbabwe, Morgan Tsvangirai, que na primeira volta das eleições presidenciais tinha obtido a maioria dos votos mas não maioria absoluta, pelo que teve de haver segunda volta, anunciou ontem em Harare que desiste de disputar com Robert Mugabe a segunda volta das presidenciais, depois de os partidários da Zanu-PF (no poder) terem, durante meses, intimidado e agredido apoiantes da oposição. Tomou tal decisão para poupar a vida dos seus apoiantes, "tendo em conta a inaceitável campanha sistemática de violência, de obstrução e de intimidação das autoridades zimbabwianas desde há algumas semanas."
"O povo quer um novo Zimbabwe. Mas não podemos pedir aos eleitores que arrisquem a sua vida para ir votar no dia 27 de Junho." "Não participaremos mais nesta farsa de processo eleitoral, marcado pela violência e ilegítimo". "Ele [Robert Mugabe] declarou a guerra ao afirmar que as balas prevaleceriam sobre os boletins de voto". E depois de dar a sua justificação de grande dignidade, apelou à ONU e às organizações pan-africanas para que intervenham a fim de evitar um "genocídio".
Na realidade, a violência no Zimbabwe não dura há apenas algumas semanas. Já faz tempo, e muito! Que o digam os que perderam familiares, mortos às mãos dos esbirros de Robert Mugabe, ou os que foram por eles espancados, seviciados, etc., etc. Que o digam os que perderam as casas, terras, ajuda alimentar porque não votaram no partido do Presidente.
E que fez o Ocidente? Que fez a UE? Que fizeram os Estados Unidos? Que fez a ONU? Muito pouco ou nada. Apenas ligeiras declarações de repúdio, de condenação e umas sanções que ninguém cumpre.
Isto faz meditar sobre as palavras de Mário Soares que na qualidade de presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, alertou que pode ocorrer uma guerra de civilizações se as religiões não forem um factor de paz. Segundo ele, «as religiões devem discutir umas com as outras. Todas têm a verdade revelada e quem tem a verdade revelada pensa que tem o exclusivo e por isso é difícil conjugar, mas tenho verificado em encontros ecuménicos que é possível encontrar pontos comuns e é isso que é preciso desenvolver». «O mundo está muito complicado. Se as religiões não forem um factor de paz, pode acontecer que se entre numa guerra de civilizações e isso seria o pior de tudo que pode acontecer».
Mas, parece que essa «guerra de civilizações» já ocorreu e a civilização ocidental ficou derrotada tal é a passividade com que tem assistido às atrocidades do ditador Robert Mugabe e outros que pululam pelo mundo. Quanto a Mugabe já há justificação suficiente para evitar um mal maior e mais vítimas, retirando-o para o exílio longe da sua terra e julgá-lo num tribunal internacional como foi feito a políticos e militares da ex-Jugoslávia, sem tantas culpas. Teria sido uma boa acção para o mundo por parte da ONU. Mas o que é a ONU? Para que serve?
Em vez de uma acção decisiva contra este ditador, a UE, apesar da sua apregoada moralidade democrática, tem continuado a abrir-lhe as suas portas e estender-lhe o tapete encarnado a ele e à sua estirpe - como aconteceu recentemente na cimeira da FAO em Roma. Mas, escandalosamente, o povo do Zimbabwe, porque tem a pouca sorte de habitar um país onde não existe petróleo e que, por isso, pouco conta para a Velha Europa e para o mundo, ainda não viu a Comunidade Internacional levantar um dedo, de forma eficaz, em defesa da sua sobrevivência, em paz, liberdade e com comida.
Só depois desta atitude de Tsanvigirai é que os Estados Unidos decidiram levar perante o Conselho de Segurança da ONU a situação política no Zimbabué, reconhecendo que "o regime de Mugabe reforça a cada dia a sua ilegitimidade. Os actos absurdos de violência contra a oposição e os observadores das eleições têm que terminar". "Os Estados Unidos preparam-se para ir no início da semana ao Conselho de Segurança para examinar as medidas suplementares que devem ser tomadas. Mugabe não pode ser infinitamente autorizado a reprimir o povo zimbabueano", adiantou a porta-voz da Casa Branca.
Entretanto, o presidente do Zimbawe já traçou os resultados da segunda volta das eleições presidenciais do próximo dia 27. "Só deixarei o poder quando tiver a certeza de que a terra fica na mão da maioria negra", diz Robert Mugabe. Garante aos seus apoiantes que "a terra roubada por colonizadores britânicos tem de ser devolvida aos seus proprietários, o povo negro", "enquanto isso não acontecer, terá de continuar a ser o presidente". Ou seja, "vou ganhar para evitar que os ingleses tomem conta do país". "Quando tiver a certeza de que a devolução da terra aos negros está verdadeiramente cumprida, então poderei dizer: o meu trabalho está terminado", afirma Mugabe, acrescentando que esse desiderato "nunca será possível com o país entregue ao MDC e a Morgan Tsvangirai".
Alguns títulos da imprensa de hoje sobre o tema:
Oposição zimbabwiana desiste das eleições
Zimbabué: EUA levam questão ao Conselho de Segurança ONU
Robert Mugabe ataca tudo e todos
Mário Soares alerta para risco de guerra de civilizações
segunda-feira, 23 de junho de 2008
Zimbabwe, caso sintomático
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6 comentários:
Não há dúvida. Uma decisão bem pensada de Tsanvigirai que implicou uma reacção em conformidade com os princípios “democráticos e universalistas”(!) como defendem as organizações multilaterais.
Uma reacção que não se fez esperar, mas apenas depois de “ameaçadas” de descredibilização nesses princípios. É lamentável que críticas ou tomadas de posição surjam muitas vezes demasiado tarde ou, mesmo, que sejam tomadas medidas contraditórias desses mesmos princípios! Veja-se a Declaração “UNIVERSAL” dos direitos do Homem e a recentemente aprovada Directiva de Retorno (dos imigrantes) ou, ainda, a dificuldade que existe na intervenção de cariz humanitário em cenários de guerra ou de crise económica.(da responsabilidade do Conselho Económico e Social da ONU.)
Se, tal como o dr. Mário Soares sugere,(e até o nosso 1º), a solução pode estar na “(re)união” religiosa como factor pacifista, porque “é possível encontrar pontos comuns",então, venha ela!! Sempre acreditei que todas as religiões têm em comum o seu lado justo, pacifista e solidário, do qual o ser humano se socorre por fé ou por tradição.
No entanto, mais uma vez me assalta a dúvida. Já os Sofistas apregoavam que não há verdade absoluta para além das nossas opiniões e, para se ter o poder, é imperioso influenciar os outros. Ora, a comprová-lo estão as atitudes mais extremistas e radicais das várias correntes religiosas que, uma no passado (pelos Cruzados e Inquisição) e outra no presente (Islamismo), apregoam e defendem a SUA fé…e as suas razões. Já estou a antever debates sobre a necessidade de criar mais um organismo titulado pela ONU, tendo em conta os seus objectivos pacificadores e humanitários, ou por outra qualquer organização! Depois, esperar a sua decisão que, mais uma vez, só é tomada tarde ou depois de “ameaçada”porque desacreditada!
Além desta, coloco-me outra questão. Será que esta directiva de retorno foi aprovada prevendo já um futuro menos risonho para as populações assoladas pelas alterações climáticas o que provocará a migração de refugiados e os consequentes efeitos sanitários, económicos e que alterará todo o modo de vida? As consequências na produção alimentar far-se-ão sentir, sem dúvida. Onde entra aqui a religião ou “o diálogo inter-religioso”?
Defende-se a unidade europeia, regida pelas mesmas leis que, queiramos ou não, vamos ter de aceitar até que alguém (?) descubra uma solução melhor. Mas não é esta organização que como o nome indica, promove a “unidade nas nações” e as incentiva à cooperação internacional na resolução de problemas económicos, sociais, culturais e humanitários ??? Ou tudo não passará de fachada? É que quantos mais morrerem, mais vão para o "céu" e o excesso populacional fica resolvido de vez!
Também pergunto como o João, “afinal para que serve a ONU”?
Manuela
Cara Manuela,
Os pontos que foca dão para um tratado de relações internacionais. E estas são egoístas, procurando o beneficio das potências que têm poder com prejuízo daqueles que já pouco têm a perder. A ONU não tem poder efectivo sobre todos os Estados e não e nem nunca será eficaz na defesa dos seus pios objectivos. A guerra do Iraque foi lançada sem consentimento da ONU e ninguém condenou os Estados que a iniciaram.
Quanto às religiões, o próprio Mário Soares mostra a sua pouca esperança, porque cada uma tem a sua fé e não abdica do essencial. Também por aí não se avança. Nelas há incoerências e contradições, não sendo possível compreender o amor aos outros e, ao mesmo tempo, pregar o ódio aos infiéis e a pressão pra converter os ímpios.
O respeito pela vida humana só interessa como tema de discursos.
Em Esparta eram mortas crianças com deficiências e os velhos eram abandonados aos bichos na selva. Quem não tem capacidade de produzir riqueza para o Estado devorador, não pode esperar grandes apoios, a não ser em promessas aliciantes, apenas. Veja os post «ensino da ignorância» e «fosso entre ricos e pobres aumenta».
Tanto nos pequenos grupos sociais como nas relações internacionais deixou de haver respeito pelos valores tradicionais que enformaram as relações sociais durante séculos e que as religiões tanto defendem.
Quanto ao Mugabe, quanto tempo faltará para ir lá uma força que o retire num helicóptero e o submeta a julgamento em Tribunal Internacional, como fizeram aos Jugoslavos? Ou será que as populações da Zimbawe não merecem esse apoio das potências mundiais?
Um abraço
João
Completamente de acordo consigo, João:"O respeito pela vida humana só interessa como tema de discursos".
Afinal, estamos no bom caminho pelo nosso país :) Andamos sempre a criticar o que os nossos governantes fazem, mas chego à conclusão que agora, finalmente, entrámos na Europa e no Mundo.
Que más línguas somos !!!
ehhehe
Anónimo,
Mas cada um de nós deve fazer a força que puder para melhorar a humanidade, mesmo que corra o risco de ser crucificado. Não é tarefa de que nos possamos afastar, pois é um dever de todos e não devemos ficar à espera que os outros venham trazer-nos a solução.
A. João Soares
O anónimo era eu...esqueci-me de assinar.
Mas continuo de acordo consigo e vou continuar a ser "mosquito nocturno", embora não me apeteça muito ser crucificada :)
Manuela
Cara Manuela,
Tive quase a certeza. Mas como tive problemas com um anónimo que até usava nomes muito diversos e até fez um comentário na Voz do Povo em meu nome, usando a minha senha, o que me levou a mudá-la e a activar a moderação, passei a ser mais cuidadoso e a não matar a dúvida!
Não tenha medo de ser crucificada: Se não ficar na memória colectiva 2.000 anos, ficará nas bocas do povo durante uns bons pares de meses!!!
Veremos o que dirão as notícias sobre a contagem dos votos no Zimbabwé. É um desporto inócuo, porque há só um concorrente. Mas pode haver abstenção e votos em branco.
Abraço
João
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