segunda-feira, 16 de junho de 2008

O Velho do Restelo disse

Depois do soneto de Camões publicado em post anterior, trago aqui o início do discurso do Velho do Restelo com que termina o canto quarto de Os Lusíadas, por nele encontrar motivos de meditação para compreender muito do que hoje ocorre em nosso redor. Quem tiver curiosidade, poderá consultar o poema épico e ler as restantes sete estrofes do Velho, que não trago aqui para não sobrecarregar com referências mitológicas e históricas, ficando por estas três que já dão estímulo para interessantes reflexões.

Estrofe 95

- «Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cua aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

Estrofe 96

«Dura inquietação d’alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

Estrofe 97

«A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

10 comentários:

Paula Raposo disse...

Cinco séculos depois...o Velho do Restelo mantém-se actual demais para o meu gosto...será que alguma coisa mudou?!! Beijos.

Arsenio Mota disse...

Caro A. João Soares:

Tornou-se um (tradicional) lugar comum referir a fala do «velho do Restelo» como expressão de conservadorismo, reaccionarismo, imobilismo. Na minha leitura, porém, em concordância com a de exegetas credíveis, leio nessas estrofes camoneanas algo diverso e muito pertinente, a exortar neste sentido: «ó Lusíada, que partes para longes terras atraído por um sonho de grandeza, vê como menosprezas a tua pátria!» Engano-me supondo que ainda hoje a maioria dos Lusos manifesta pouco apreço, escasso interesse pelas sortes do seu país? Isto, é claro, para além de Sua Majestade o Futebol! Aí, sim, abunda «patriotismo» de bandeiras ao vento atiçadas pelos media!
Meu caro: que leitura faz você, realmente, da fala do «velho do Restelo»?
Abraço.

A. João Soares disse...

Cara Paula,
Os defeitos e as virtudes do ser humano não mudam muito através dos tempos. E, por isso, não espanta que num País de gente iletrada que nada aprende de novo e, quando copia algo do estrangeiro, copia o pior, se continue atrasado igual a 5 séculos antes!!!
O gosto do poder (glória de mandar), a ambição (vã cobiça), a vaidade, a fama, a ostentação, o gosto pela fraude, tudo mascarado com a palavra «honra», são características actuais dos nossos dirigentes.
Há retratos antigos que parecem de hoje, a cores!
Como pode avançar um país que está igual ao que sempre foi? Somos avessos ao progresso, que não sabemos utilizar em algo de positivo. Quantas pessoas com mais de 70 anos conhece que gostem de computadores e estejam ligadas à Internet para comunicar, investigar, produzir?
Se perguntar a alguém o motivo de orgulho de ser português, a maior parte das pessoas mais eruditas falam nos descobrimentos. Mas esquecem que não foi obra de lusitanos mas dos cientistas judeus
que criaram o astrolábio, a cartografia a astronomia que ajudava a orientação no mar e a navegação. Logo que os judeus foram expulsos para a Holanda, esta começou a substituir Portugal no Oriente (Indonésia, etc), América Central e tentar avançar no Brasil, e Portugal começou a recuar, por falta de poder competitivo.

Beijos
João

A. João Soares disse...

Caro Arsénio,
Não vejo muita lógica em colocar o Camões a criticar «emigração», até porque nessa data tínhamos cá muito estrangeiro, pois grande parte dos «quadros» marinheiros eram da escola a de Veneza. Dali veio muita ciência que foi aproveitada pelos rapazes do Infante.
O Camões era muito claro a dizer as coisas embora fizesse muitas alusões eruditas a sabedoria europeia clássica e à história do País.
Na época os descobrimentos não eram um abandono da Pátria, mas uma aventura para ir buscar riqueza, a cobiça, a vaidade, a busca da fama. O povoamento das colónias só começou mais de três séculos depois.
Já Eça de Queirós se referiu aos emigrantes mas de forma elogiosa dizendo que eram a nata da população, os mais válidos, inteligentes e com capacidade de iniciativa, os menos acomodados à vil tristeza do rectângulo.
No Velho do Restelo vê.se mais a crítica a jovens incautos que iam meter-se numa aventura de que podiam não se sair bem. Camões colocou-o aqui para valorizar a valentia dos marinheiros mostrando que, além dos problemas do mar, os eles tinham também que vencer a opinião demasiado sensata dos portugueses em geral.
Pode haver muitas opiniões, mas é preciso situá-las e ver as realidades da época, coisa que muitos intelectuais não conseguem.
Um abraço
A. João Soares

Mariazita disse...

Meu caro João
Se Camões é, para mim, o maior poeta português, Eça de Queiroz é, em minha opinião, o maior escritor de todos os tempos.
E se Camões "escrevia" nas entrelinhas, Eça fazia-o bem às claras, desassombradamente. Li todos os seus livros, alguns mais do que uma vez. Continua sempre actual.
O Velho do Restelo, ou o seu significado, comparado com os tempos actuais... mostra a triste realidade do nosso país.
Com a Fama e a Glória (só no futebol...) vão enganado o povo néscio, que assim se alheia dos problemas reais.
Até quando???
Beijinhos
Mariazita

A. João Soares disse...

Cara Mariazita,
De futebol não gosto de falar. A coragem não me chega para tanto. Falar de quê? dos estádios que custaram rios de dinheiro e agora estão às moscas?, Do apito Dourado? Das questiúnculas entre os clubes e os dirigentes? Do empastelamento da Comunicação Social que não encontra nada mais importante para os noticiários? Das bandeiras nacionais que andam tão maltratadas?
Em Timor houve um natural que apareceu num quartel com uma cabaça de baixo do braço. Interrogado, disse que aquele tipo tinha pisado a sombra da bandeira e ele cortou-lhe o pescoço. Que faria esse patriota se visse a bandeira a forrar o selim de uma motorizada?
Mudam-se os tempos, mudam-se os valores éticos!!!
Beijos
João

Å®t Øf £övë disse...

João,
Venho do Mirante para o Miradouro na companhia do Velho do Restelo, e nas palavras de Camões.
Abraço.

A. João Soares disse...

Art of Love,
Obrigado pela visita
Abraço
A. João Soares

Arsenio Mota disse...

A. João Soares,
meu caro amigo:

Não quero prolongar esta conversa, que me parece interessante, mas já vai alongada... Por favor, não me leve a mal, realmente noto na sua resposta (ver ontem, às 15:30) uma certa contradição de termos. Considera, e muito bem, que Camões não aponta para uma «emigração» (então inexistente) e adiante acha que o tema das estrofes em foco é mesmo esse. Logo, de que fala Camões pela boca do Velho do Restelo?
Fala, acho eu, dos compatriotas que saíam então barra fora em busca de aventuras longe, descurando assim a «aventura» maior que seria a tal, a de apostarem na sua própria terra... Daí haver quem pense que a fala do velho do Restelo, devidamente entendida, ainda hoje tem todo o sentido e actualidade. Estou a dizer isto, caro amigo, sem todavia pretender obviar à sua leitura, legítima. Asseguro que isto para mim é autêntico diálogo de apreciador de diálogos e... ponto final.
Abraço cordial.

A. João Soares disse...

Caro Arsénio,
Todos os textos se presta a várias interpretações, principalmente quando se trata de poesia. Gostei desta troca de opiniões que respeito com o meu habitual espírito de tolerância. Bem haja pelo brilho que tem dado a este blogue que, com os seus contributos, está mais enriquecido.
Um abraço
A. João Soares