segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A política partidária e as realidades

Transcrição do artigo de hoje no JN de Mário Crespo, bem preparado e muito incisivo, com pontaria a pontos significativos

Pirotecnias
Mário Crespo

O partido governamental realiza o Congresso num dos momentos de maior crise da democracia portuguesa. Crise imensa de valores que, entre dúvidas na lisura de quem nos governa e inseguranças quanto às instituições da República, nos roubou o sentimento de dignidade e orgulho nacional que é o que inspira os povos a ultrapassar as crises. Sem essa ferramenta, ao fim dos quatro anos de governação de José Sócrates - entre Freeport I e Freeport II - Portugal vive um quotidiano de descontentamento.

Como conduzir os trabalhos do mais importante órgão do partido, evitando que números do desemprego diariamente desactualizados não dominem as preocupações de militantes responsáveis? Como evitar que o desencanto dos estraga-festas desfigure com a realidade relatos mediáticos mais virtuais?

Com uma operação de choque e espanto de efeitos pirotécnicos, sob a forma de moções e diversões. O guião arranca com uma supergirândola que rebenta qual big-bang e ocupa o espaço de debate dominando o Congresso: "O Tino de Rans já não pega. Vamos convidar Mahmoud Ahmadinejad, Raúl Castro ou Hugo Chávez", propuseram os assessores de media. "Ahmadinejad não vem! Nós nem sequer somos islâmicos e os iranianos já disseram que não gostam do casamento homossexual. Os irmãos Castro sempre irritaram Mário Soares, portanto, não. Ficamos por Chávez. Ninguém o convida na Europa e ele vem de certeza. Soares acha-lhe piada e as televisões vão andar sempre atrás dele".

"Porreiro, pá. Mete aí na agenda um jogging na Cova da Moura e manda vir da Havanesa cinco caixas de Coronas que ele também ainda fuma". Um conselheiro mais prudente dirá que com esta vinda de Hugo Chávez talvez seja melhor eliminar na tradução para espanhol da moção do secretário-geral aquela parte na página 6, onde se lê : "uma após outra, as ditaduras inspiradas pelo comunismo foram derrubadas pelos povos em busca de liberdade e democracia". 'Está claro que isto é dirigido ao PCP, mas parece mal, logo agora que o camarada Chávez se tornou presidente vitalício". "Depois, para cobrir os problemas das escolas, da saúde, da justiça e da falta de Magalhães vamos lançar então a proposta do casamento gay. Para já como um processo facultativo aberto aos cidadãos que o requeiram, mas que tendencialmente poderá ser obrigatório, a menos que se pague uma coima ao atingir-se a maioridade. Essa parte deixa-se para quando a Comissão Europeia nos impuser o procedimento relativo aos défices excessivos. Para os pensionistas deixarem de fazer contas a pacotes de subsídios e complementos que não chegam para os medicamentos diários nem para a meia de leite e o folhado de salsicha mensal, aí lança-se a discussão sobre a eutanásia. Ficam todos cheios de medo e não falam mais disso".

E pronto. Inspirado pela presença de Chávez, o Congresso votará por unanimidade as 26 páginas da moção de José Sócrates. Mesmo aqueles pontos da página 4, onde se descreve que no passado houve uma fase de "falta de sentido de Estado e da dignidade das instituições tão intolerável que obrigou à demissão antecipada do Governo". Esta é a parte mais perigosa da moção de Sócrates. Claro que ele se refere ao governo PSD/CDS. Mas está a dar ideias a Cavaco, para quando o presidente tiver tempo para se concentrar no Governo, depois de resolver aquela questão que ele tem lá no Conselho de Estado.

2 comentários:

ANTONIO DELGADO disse...

Felizmente que há em Portugal pessoas com sentido comum. Já com anterioridade li um artigo do MC igualmente muito interessante. O elevado número de analfabetos funcionais, as constantes "fumaças demagógicas" de politicos de plastico, a conhecida falta de autoestima portuguesa e a sua tendencia para o "levantai hoje de novo", como diz o nosso hino, a isto pouco interessará a prosa do Mario Crespo e de outros porque a realidade mostra-nos que o português se demite constantemente das suas verdadeiras responsabilidades civícas e daquilo que lhe é importante. O destino, "é a vida", a sorte (somos os maiores apostadores do euromilhoes da Europa), são as regras que, de grosso modo, orientam este povo, não é o trabalho ou uma etica oriunda dele. É por isso que este povo está cada vez mais está fora da realidade. Desconfio se o ar dessa area geografia não dana ou atrofia cerebros.
Um forte abraço
António Delgado

A. João Soares disse...

Caro António Delgado,
Neste momento estava tentado a tratá-lo por professor, mas a nossa amizade embora virtual, permite a familiaridade de colegas bloguistas. As suas palavras são muito definidoras da «idiossincrasia» dos portugueses. Como diz, aceitam tudo porque «é a vida». As palavras do Mário Crespo e outras no mesmo sentido pouco efeito obtêm, mas se houver muitos a dizer o mesmo, acabarão por conseguir que muita gente desperte do «coma induzido» em que tem sido mantido por cantos de sereia enganadores.
Penso que o povo já vai ficando mais desperto do que estava há meia dúzia de anos. Há-de tornar-se em cidadão da Europa semelhante aos dos países nossos parceiros. O ditado diz que «água mole em pedra dura tanto bate até que fura» e a sabedoria popular encerrada nos ditados tem razão de existir.
Um abraço
João Soares