domingo, 23 de outubro de 2011

Caminho fácil é ilusão

Transcrição de e-mail recebido, há minutos, retransmitido por um Amigo, em que é desenhado o quadro das últimas décadas da vida nacional:

Carta Aberta ao venerando chefe do estado a que isto chegou

Senhor Presidente

Há muito muito tempo, nos dias depois que Abril floriu e a Europa se abriu de par em par, foi V.Exa por mandato popular encarregue de nos fazer fruir dessa Europa do Mercado Comum, clube dos ricos a que iludidos aderimos, fiados no dinheiro fácil do FEDER, do FEOGA, das ajudas de coesão e mais liberalidades que, pouco acostumados, aceitámos de olhar reluzente, estranhando como fácil e rápido era passar de rincão estagnado e órfão do Império para a mesa dos poderosos que, qual varinha mágica, nos multiplicariam as estradas, aumentariam os direitos, facilitariam o crédito e conduziriam ao Olimpo até aí inatingível do mundo desenvolvido. Havia pequenos senãos, arrancar vinhas, abater barcos, não empatar quem produzisse tomate em Itália ou conservas em Marrocos, coisa pouca e necessária por via da previdente PAC, mas, estando o cheque passado e com cobertura, de inauguração em inauguração, o país antes incrédulo, crescia, dava formação a jovens, animava a construção civil , os resorts de Punta Cana e os veículos topo de gama do momento. Do alto do púlpito que fora do velho Botas, V.Exa passaria à História como o Modernizador, campeão do empreendedorismo, símbolo da devoção à causa pública, estóico servidor do povo a partir da marquise esconsa da casa da Rua do Possôlo. Era o aplicado aluno de Bruxelas, o exemplo a seguir no Mediterrâneo, o desbravador do progresso, com o mapa de estradas do ACP permanentemente desactualizado. O tecido empresarial crescia, com pés de barro e frágeis sapatas, mas que interessava, havia pão e circo, CCB e Expo, pontes e viadutos, Fundo Social Europeu e tudo o que mais se quisesse imaginar, à sombra de bafejados oásis de leite e mel, Continentes e Amoreiras, e mais catedrais escancaradas com um simples cartão Visa.

Ao fim de dez anos, um pouco mais que o Criador ao fim de sete, vendo a Obra pronta, V.Exa descansou, e retirou-se. Tentou Belém, mas ingrato, o povo condenou-o a anos no deserto, enquanto aprendizes prosseguiam a sanha fontista e inebriante erguida atrás dos cantos de sereia, apelando ao esbanjamento e luxúria.

No início do novo século, preocupantes sinais do Purgatório indicaram fragilidades na Obra, mas jorrando fundos e verbas, coisa de temerários do Restelo se lhe chamou. À porta estava o novo bezerro de ouro, o euro, a moeda dos fortes, e fortes agora com ela seguiríamos, poderosos, iguais. Do retiro tranquilo, à sombra da modesta reforma de servidor do Estado, livros e loas emulando as virtudes do novo filão foram por V.Exa endossados, qual pitonisa dos futuros que cantam, sob o euro sem nódoa, moeda de fortes e milagreiro caminho para o glorioso domínio da Europa. Migalha a migalha, bitaite a bitaite, foi V.Exa pacientemente cozendo o seu novelo, até que, uma bela manhã de nevoeiro, do púlpito do CCB, filho da dilecta obra, anunciou aos atarantados povos estar de volta, pronto a servir. Não que as gentes o merecessem, mas o país reclamava seriedade, contenção, morgados do Algarve em vez de ostras socialistas. Seria o supremo trono agora, com os guisados da Maria e o apoio de esforçados amigos que, fruto de muito suor e trabalho, haviam vingado no exigente mundo dos negócios, em prol do progresso e do desenvolvimento do país.

Salivando o povo à passagem do Mestre, regressado dos mortos, sem escolhos o conduziram a Belém, onde petiscando umas pataniscas e bolo-rei sem fava, presidiria, qual reitor, às traquinices dos pupilos, por veladas e paternais palavras ameaçando reguadas ou castigos contra a parede. E não contentes, o repetiram segunda vez, e V. Exa, com pungente sacrifício lá continuou aquilíneo cônsul da república, perorando homilias nos dias da pátria e avisando ameaçador contra os perigos e tormentas que os irrequietos alunos não logravam conter. Que preciso era voltar à terra e ao arado, à faina e à vindima, vaticinou V.Exa, coveiro das hortas e traineiras; que chegava de obras faraónicas, alertou, qual faraó de Boliqueime e campeão do betão; que chegava de sacrifícios, estando uns ao leme, para logo aconselhar conformismo e paciência mal mudou o piloto.

Eremita das fragas, paroquial chefe de família, personagem de Camilo e Agustina, desprezando os políticos profissionais mas esquecendo que por junto é o profissional da política há mais anos no poder, preside hoje V.Exa ao país ingrato que, em vinte anos, qual bruxedo ou mau olhado, lhe destruiu a obra feita, como vil criatura que desperta do covil se virou contra o criador, hoje apenas pálida esfinge, arrastando-se entre a solidão de Belém e prosaicas cerimónias com bombeiros e ranchos.

Trinta anos, leva em cena a peça de V.Exa no palco da política, com grandes enchentes no início e grupos arregimentados e idosos na actualidade. Mas, chegando ao fim o terceiro acto, longe da epopeia em que o Bem vence o Mal e todos ficam felizes para sempre, tema V.Exa pelo juízo da História, que, caridosa, talvez em duas linhas de rodapé recorde um fugaz Aníbal, amante de bolo-rei e desconhecedor dos Lusíadas, que durante uns anos pairou como Midas multiplicador e hoje mais não é que um aflito Hamlet nas muralhas de Elsinore, transformado que foi o ouro do bezerro em serradura e sobrevivendo pusilânime como cinzento Chefe do estado a que isto chegou, não obstante a convicção, que acredito tenha, de ter feito o seu melhor.

Respeitoso e Suburbano, devidamente autorizado pela Sacrossanta Troika

António Maria dos Santos
Sobrevivente (ainda) do Cataclismo de 2011

Imagem de arquivo

2 comentários:

A. João Soares disse...

Transcrevo este comentário recebido por e-mail, de um Amigo a quem agradeço:

Sabe-se que um dos defeitos (talvez, um dos maiores defeitos) dos políticos, que nos governam e que nos têm governado (digo, desgovernado), tem sido o seu compadrio e conluio com seus amigos e camaradas de partido e com as suas clientelas políticas. Falta de MORAL e ÉTICA POLÍTICA.
Trata-se de MALEITA POLÍTICA NACIONAL, com honrosas e raras excepções (excepções, na escrita à moda antiga).
Pela minha parte, não faço juízos sobre o comportamento do Professor Aníbal Cavaco Silva como docente universitário, mas estou em desacordo com algumas das suas decisões políticas como PM e, agora, como PR. Nestas funções, considero que lhe tem faltado «génio» mesmo!...Aliás, tem revelado algum conluio e compadrio político e algumas contradições entre o dito e o feito!...A propósito, por exemplo, aguardo para ver qual o seu comportamento face a algumas das medidas de austeridade previstas na proposta de OE deste Governo PSD-CDS, designadamente, entre outras, quanto ao corte total e discriminitório dos subsídios de Férias e de Natal dos funcionários públicos e dos reformados.
Aí, sim, poderemos avaliar o «génio» Cavaco!!!

Abraço amigo,
AMF.

A. João Soares disse...

Caro AMF,

Agradeço esta sua atenção e aqui publico este texto sereno, isento e muito claro.
Vamos lá ver se neste caso ele não se fica pelos tabus. Aliás as palavras que já proferiu fazem-nos esperar por atitude coerente, com as palavras referidas em
Equidade fiscal é imposição ética
e com a conclusão do Conselho de Estado.

Abraço
João