domingo, 21 de março de 2010

Limitar o valor das prendas

Transcrição .

Prendas e subornos
Correio da Manhã. 21 Março 2010 - 00h30, Por Francisco Moita Flores, Professor Universitário

Enquanto autarca aceitarei prendas que possam ser encaminhadas para o Banco Alimentar contra a Fome.

Quando tomei posse como presidente da Câmara de Santarém fui confrontado com a quantidade de prendas que chegavam ao meu gabinete. Era a véspera de Natal. Para um velho polícia, desconfiado e vivido, a hecatombe de presuntos, leitões, garrafas de vinho muito caro, cabazes luxuosos e dezenas de bolos-rei cheirou-me a esturro. Também chegaram coisas menores. E coisas nobres: recebi vários ramos de flores, a única prenda que não consigo recusar.

Decidi que todas as prendas seriam distribuídas por instituições de solidariedade social, com excepção das flores. No segundo Natal a coisa repetiu-se. E então percebi que as prendas se distribuíam por três grupos.

- O primeiro claramente sedutor e manhoso que oferecia um chouriço para nos pedir um porco.
- O segundo, menos provocador, resultava de listas que grandes empresas ligadas a fornecimento de produtos, mesmo sem relação directa com o município, que enviam como se quisessem recordar que existem.
- O terceiro grupo é aquele que decorre dos afectos, sem valor material mas com significado simbólico: flores, pequenos objectos sem valor comercial, lembranças de Natal.

Além de tudo isto, o correio é encharcado com milhares de postais de boas-festas que instituições públicas e privadas enviam numa escala inimaginável. Acabei com essa tradição. Não existe tempo para apreciar um cartão de boas-festas quando se recebe milhares e se expede milhares.

Quanto às restantes prendas, por não conseguir acabar com o hábito, alterei-o. Foi enviada nova carta em que informámos que agradecíamos todas as prendas que enviassem. Porém, pedíamos que fosse em géneros de longa duração para serem ofertados ao Banco Alimentar contra a Fome. Teve um duplo efeito: aumentou a quantidade de dádivas que agora têm um destino merecido. E assim, nos últimos dois Natais recebemos cerca de 8 toneladas de alimentos.

Conto isto a propósito da proposta drástica que o PS quer levar ao Parlamento que considera suborno qualquer oferta feita a funcionário público. Se ao menos lhe pusessem um valor máximo de 20 ou 30 euros, ainda se compreendia e seria razoável. Em vários países do mundo é assim. Aqui não. Quer passar-se do 8 para o 80. O que significa que nada vai mudar. Por isso, fica já claro que não cumprirei essa lei enquanto funcionário público. Enquanto autarca aceitarei prendas que possam ser encaminhadas para o Banco Alimentar. E jamais devolverei uma flor que me seja oferecida.

NOTA: Sugestão sensata, porque passar do infinito para o zero não dá resultado devido à prática tradicional. Assim, ainda seria aceitável receber um ROBALO, mas não um EQUIPAMENTO DE FUTEBOL, e muito menos um Ferrari!!!

4 comentários:

Luis disse...

Caro João,
Moita Flores tem dado grandes exemplos de honestidade e seriedade na sua autarquia e não só!
Concordo inteiramente com tudo que ele escreve! Tudo o resto é "Conversa da Treta" para enganar os papalvos! Nada mais.
Um abraço amigo.

A. João Soares disse...

Caro Luís,

A personalidade de Moita Flores dá força à sua sugestão. Mas independentemente dele a ideia merece aplauso, só por si. Querer acabar com as prendas sem limites dá para aceitar excepções e isso permite a continuação desde os «robalos» até aos Mercedes ou aos apartamentos em avenidas de luxo da baixa pombalina!!!
É preciso realismo e sentido de Estado, coisas que fazem muita falta na vida nacional actual.

Um abraço
João

Pedro Coimbra disse...

Caro João Soares,
Não podia deixar de comentar este post.
Algo semelhante ao que escreve Moita Flores se passou durante muitos anos aqui em Macau.
Eram as famosas prendas de valor inferior a 500 patacas (cerca de 50 euros).
Nunca percebi isto.
Se me oferecem uma caneta, uma gravata, como é que eu posso saber o valor que foi gasto?
Se a caneta foi comprada num penhor, pode custar uma fortuna se for nova, mas no penhor uma ninharia.
A gravata, em preço de tabela, pode custar mais de 500 patacas.
Em saldos, nem metade.
Ficamos em quê.
E porque raio é que me têm que oferecer prendas?
Sou remunerado pelo exercício das minhas funções, e isso deve bastar.
Depois apareceram novas instruções, ainda hoje em vigor.
Os superiores hierárquicos decidiriam o que era, ou não, relevante.
Acompanho o Moita Flores - querem dar-me prendas?
Fico sensibilizado, mas prefiro que as dêem a uma instituição de caridade.
Não necessito que superiores hierárquicos me digam o que posso aceitar.
O que eu posso aceitar, porque é de meu direito, é o meu salário.
E é mais do que suficiente.
Um abraço

A. João Soares disse...

Caro Pedro Coimbra,

A sua solução é clara e não deixa lugar a argumentos desculpabilizantes.
O sistema de um limite do valor preta-se a aldrabices. Contaram-me há tempos que numa reunião internacional em Portugal foram oferecidas recordações aos participantes e o americano pediu uma declaração a afirmar que o valor era inferior ao limite, a fim de ele não ter problemas com os chefes.
Mostra que há esse cuidado dos chefes e rigor na aplicação, mas presta-se a mentiras. O mais fácil é não haver prendas de espécie alguma.
Mas os nossos políticos não querem as coisas assim tão claras!!!

Um abraço
João