segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ética ou autoridade

Não resisti à tentação de pedir ao autor deste comentário no post Como atacar os maiores problemas de momento?, autorização para o publicar em local de mais visibilidade, do que o discreto sítio onde o encontrei. Fui autorizado e espero que os leitores gostem e concordem com a minha iniciativa. Não é muito frequente encontrar uma análise tão completa e serena, como esta de Luís Pessoa.

Éticas

Caro Pedro Faria, o Amigo atacou com força pelo factor mais complicado de abordar, na nossa modesta opinião: a ética ou a falta dela.

Soluções, verdadeiras soluções, não as possuímos, nem sabemos se existem. Diagnósticos, esses são muitos e conduzem quase sempre à mesma maleita, se bem que de modo cada vez mais refinado, digamos assim.

Em Portugal não há, historicamente, uma tradição de ética, em nenhum sector da nossa vida, nem nós a podemos invocar como valor sagrado nas nossas relações. Aliás, a ética foi sempre vista como um entrave ao desenvolvimento, em que o cumprimento dos pressupostos exigidos pela transparência, provocam sempre perdas escusadas de tempo.

A existência de uma ética a toda a prova, não é algo de que os nossos ancestrais se possam gabar e nós somos os seus naturais seguidores. Não é um assunto de políticos, governantes ou opositores, antes uma questão fundamental de educação cívica natural. Reforço o “natural” porque não pensamos que isso possa ser desenvolvido por si só, ministrado nas escolas ou ensinado, pelos motivos que mais à frente referiremos. Os políticos limitam-se a aproveitar a boleia, porque lhes convém. É só verificar como foi feita a validação do chamado Tratado de Lisboa e como todos os países ratificaram à revelia da transparência ética devida aos seus governados, bem como o modo “arrebanhado” como as populações aceitaram essas soluções artificiosas, diz tudo sobre o nosso entendimento sobre a ética.

Todos nos revoltamos contra a falta de ética nos outros, mas achamos de uma naturalidade normal (desculpem a redundância) quando o que está em causa são “pormenores”, pequenas coisas. Um mesmo comportamento é por nós catalogado de forma diversa: achamos mal se um político mete uma “cunha” para uma pessoa, achamos natural que “falemos” do nosso filho a um amigo nosso que é responsável por empregos na área dele; achamos mal que um político se aproveite de informação privilegiada para obtenção de mordomias, mas vamos a correr comprar acções que um amigo “lá de dentro” soube que vão valorizar; achamos mal que um político trate da sua vidinha em contas no estrangeiro, para fugir aos impostos, mas vamos a correr subscrever produtos que sabemos serem ilegais ou próximos disso ou usar todos os estratagemas para fugirmos aos nossos impostos; achamos mal que os batedores de um político abram caminho por entre os carros em fila, mas nós usamos uma faixa de rodagem impedida até ao limite do possível, para metermos abusivamente o nosso carro à frente da fila enorme que se acumulou na faixa ao lado; etc.

O mau comportamento ético “dos outros” choca-nos sempre e criticamos os abusadores, mas apenas naquilo em que nos sentimos prejudicados. Não perdemos oportunidade de fazermos o mesmo se daí retirarmos benefícios. A desculpa é óbvia: “eles fazem ainda pior”… “se eles não dão o exemplo porque hei-de eu dar?”.

O ponto principal, na nossa óptica, passa pela ausência de autoridade, mais do que por uma ausência de educação cívica. Para que não haja más interpretações, não defendemos uma ditadura nem uma interrupção da democracia. Digamos antes que as características cada vez mais ferozes em termos de competição pessoal (na escola, no emprego, na estrada, em tudo, afinal), impedem que os valores éticos que penso que todos temos “entranhados” (ninguém ignora o que é acertado ou incorrecto, todos sabemos como devemos comportar-nos, mas…) se sobreponham aos valores que a sociedade real valoriza (sucesso, poder…). Quando a própria pressão social não se exerce no sentido da honestidade, da ética, mas sim no sentido de validar os comportamentos menos consentâneos com esses valores (era só o que faltava eu pagar os meus impostos, para eles roubarem à grande; o Manuel é uma máquina, fez o Lisboa-Porto em duas horas”, etc.), pouco ou nada há a fazer no campo educacional. Principalmente porque mais tarde ou mais cedo as (ainda) crianças vão-se confrontar com uma multiplicidade de casos em que sairão altamente prejudicadas, em assuntos que terão importância decisiva na sua vida futura, em favor de quem não tiver qualquer escrúpulo.

Portanto, para estarmos à espera que os mecanismos educacionais venham hipoteticamente a funcionar num futuro distante, inculcando esse espírito ético, tornando infrutífera qualquer tentativa de subverter os valores éticos, teremos gerações e gerações de honestos a serem “degolados” pelos aventureiros sem escrúpulos! E nisso nós não acreditamos! Não acreditamos em anjos. Logo, logo, serão os mais honestos a terem de se “encaixotar” nessa lama viscosa para poderem sobreviver.

Daí a nossa referência à vertente não educacional, mas sim de autoridade. Olhando os exemplos que logo acodem como exemplos de civismo e ética, os países nórdicos, é fácil notarmos que aí há uma vertente censória e autoritária nos assuntos ligados à ética. É tal a (re)pressão das autoridades, que os próprios cidadãos exercem essa mesma (re)pressão sobre os seus concidadãos quando verificam aspectos suspeitos de desvio. É “bufaria”, comentamos logo por cá. Será, mas é uma “bufaria” que depois deixa de o ser porque ao verificar-se que há honestidade no tratamento, ninguém pensa sequer em usar esses métodos que o vão imediatamente penalizar perante os outros. O risco de se ver destruído na sua credibilidade é enorme e esse sentimento vai sendo passado de geração em geração e “entranhado” com normalidade.

A repressão extrema exercida teve uma finalidade dissuasora (os nórdicos não eram nem são nenhuns santinhos, são descendentes dos vikings e só isso é um dado relevante para o bilhete de identidade), mas hoje já nem é necessária (embora ainda lá esteja pronta a actuar) porque cada um dos cidadãos já absorveu o conceito básico e entendeu que há relações “limpas”, mesmo na concorrência feroz que lá há. O seu sentimento de que estão todos em igualdade de circunstâncias é o melhor guardião do sentido ético.

Em suma, um tema tão variado, com tantas causas e tão grandes efeitos em termos do minar dos alicerces de qualquer grupo ou sociedade, ainda que com o seu consentimento, jamais estará acabado.

E por mais soluções que imaginemos ter posto em cima da mesa, muitas mais se levantarão sempre, sendo certo que todas terão já sido testadas um pouco por toda a parte, umas vezes com mais vontade política, outras com menos, mas sempre sem grande sucesso.

Luis Pessoa

2 comentários:

Paula Raposo disse...

Uma excelente análise!! Beijos.

A. João Soares disse...

Querida Amiga Paula,

Sem dúvida que é uma boa análise de Luís Pessoa, mas ao se trata de uma questão com duas alternativas, pois a autoridade não funciona sem ética. A autoridade tem de resultar de decisão sensata do poder baseado na ética. Ora como os políticos passam ao lado da ética sem para ela olharem, não são capazes da decisão voluntária de usar da autoridade para tornarem os comportamentos mais civilizados, com mais ética.
É o dilema: o que apareceu primeiro, o ovo ou a galinha?

Beijos
João