Há dias, um colega bloguista, com ares de dedicado agente da Pide, escreveu, num comentário, que sabe quem sou mas queria que fosse eu a confessar. Ter de confessar é uma imposição do tipo Guantânamo, Tarrafal ou, simplesmente, Rua António Maria Cardoso, mas vou tentar aceitar este desafio.
O que sou? Será que quer saber o peso, a altura, a medida da cintura, do colarinho, do sapato?
Se quer saber o que faço e penso, vou tentar descrever o dia-a-dia do meu intelecto, no mundo sem poluição em que me instalei, pelo menos mentalmente. Vivo a 3 quilómetros a Sul de Gouveia em plena subida para a Serra da Estrela ao lado da estrada que vai para a nascente do Mondego e para as Penhas Douradas. A casa ou casebre onde passo as horas do dia em que não tenho que estar a vigiar o rebanho de cabras que tenho à minha responsabilidade, não tem as comodidades de um prédio urbano com luz, água, esgoto, gás. Mas mantenho-a limpa e com o mínimo de modernidade ao ponto de ter sido convidado a participar no anúncio da netcabo (ele há coisas fantásticas, não há?) de que todo o País gostou.
Os que se recordam desse anúncio, perguntarão como posso em tal casa ter computador e ligação à Internet. Muito facilmente. Tenho uma placa fotovoltaica na cobertura da casa e umas baterias que armazenam e reservam a energia para a noite e, durante o dia, no campo, para não gastar dinheiro em pilhas que ficavam muito caras, tenho uma pequena placa fotovoltaica que dá energia para o rádio de bolso que me mantém ligado ao mundo, através dos noticiários. Esta placa, para não me impedir os movimentos nem ocupar os braços, é transportada como mochila, o que me obriga a procurar estar, o mais possível, de costas para o sol ou, se parado por mais tempo, colocá-la no chão inclinada de forma a que os raios solares incidam nela perpendicularmente. Creio ter sido explícito quanto a energia.
Não transporto comigo o computador portátil, com receio de o danificar, quer pelo mau tempo, quer por quedas ou choques e principalmente, porque ele me distrairia da missão que me foi incumbida de vigiar as cabras. Sem ele, convivo mais livre e atentamente com os meus pensamentos que se debruçam, com o possível pormenor, sobre tudo aquilo que se passa no Mundo inteiro. Esses pensamentos chegam ao ponto de fazer conjecturas que acabam, muitas vezes, por se tornar realidade algum tempo depois. Isso vem confirmar que a humanidade pouco ou nada tem evoluído e o ser humano mantém as virtudes e os defeitos básicos de muitos milénios atrás. Daí, a previsibilidade dos acontecimentos para quem estiver atento e observar sem parti-pris, com isenção e análises apartidárias e imparciais.
Mas, depois desta panorâmica do meu dia-a-dia, a propósito da energia, vou agora tentar fazer uma descrição cronológica. Levanto-me cedo, mal começa no cimo da serra a surgir o alvor da manhã, muito antes de o Sol nascer. Dou uma olhada ao redil para ver se não há novidade, pois concluo das notícias que há por aí ladrões de gado que, durante a noite, carregam grande quantidade de rezes. Felizmente ainda não tive esse azar. Acendo o lume do canto da lareira e aqueço o leite para o pequeno almoço feito de broa de milho, de queijo caseiro e fruta da época e da região e, entretanto, ligo o computador portátil para ver os e-mails recebidos, pois tenho umas dezenas de correspondentes espalhados pelo mundo, como dizia no anúncio de que atrás falei. Dou uma volta pelos jornais online e vejo se tenho novos comentários no meu blog, aos quais respondo de imediato, como podem ver nas horas que neles constam. Entretanto fui comendo o pequeno almoço que tem de ser uma refeição com os ingredientes necessários para aguentar até ao fim da tarde, contando com o «almoço» que é apenas constituído por queijo caseiro, broa e leite ordenhado ali para o tarro.
Depois, lá vamos calmamente para a serra à procura de pasto por entre as fragas. Quando as cabras encontram algo mais apetitoso e abundante, sento-me olho atentamente para a paisagem a perder de vista com a senhora do Castelo e de Mangualde lá ao fundo, e as malditas chaminés de fábricas a sujar os ares com as suas fumaças, sempre com o som do rádio em fundo a não me deixar esquecer que o mundo não é só o meu pensamento mas desgraçadamente e com mais peso, são as tragédias do Iraque, do Sri Lanka, do Quénia, do Tibete, do Kosovo, etc.
Não se espantem, pois esta minha vida de pensador solitário mantém-me mais actualizado do que muitos dos nossos governantes que, fechados nas torres de marfim, rodeados de guarda-costas, de telefonistas e de assessores que lhes filtram toda a informação, vivem de ilusões totalmente alheias às realidades, como se tem visto nas áreas da Saúde, do Ensino, da Justiça, da Economia, das Finanças, das Obras do Jamé, etc.
Aqui, atento a tudo, sem paixões por qualquer opinião de «sábios», apenas socorrido pelos factos filtrados pela lógica e bom senso, consigo formular juízos que como atrás disse, até permitem fazer previsões que, muitas vezes, se tornam realidades. Apesar da minha natural modéstia, chego a pensar que para ser sábio não é preciso ter grandes, estudos, nem comprar diploma de engenheiro no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, bastando usar o raciocínio e observar com atenção o que se pode ver e ouvir. Fora de vaidades, é na gente humilde dos rurais que encontramos os cérebros mais produtivos em pensamentos, simples na sua formulação, mas ricos de saber e senso prático. Não é apenas o António Aleixo, mas há muitos mais de quem pouco ou nada se fala.
A observação das minhas cabras, umas mais inteligentes do que as outras, mas todas com instintos bem desenvolvidos para sua defesa, sobrevivência quanto a alimentação e perigos, a sua ambição de poder para se imporem às outras, o respeito pela chefia, o espírito de grupo que me facilitam a minha obrigação de as manter juntas em autêntico rebanho, etc , esta observação é uma das fontes de saber e de reflexão. Por outro lado, a meteorologia é tratada por nós, rurais, quando bons observadores e habituados a pensar. E essa é uma das minhas tarefas do fim do dia, perscrutando o espaço para prever como estará o tempo no dia seguinte. Viver integrado no terreno, na vegetação e na atmosfera faz parte da globalidade dos interesses imediatos de um pastor que lhe dão um saber tão profundo que não estará ao alcance de qualquer urbano.
Regressado a casa e instalado o gado com as comodidades adequadas, preparo o jantar e vou contactar os amigos da Internet, sempre atentos ou viciados (!) que me enchem o Outlook de e-mails com lindos anexos, alguns com muito interesse cultural. Aproveito as últimas horas do anoitecer para colocar mais um tema para reflexão no blog, responder a algum comentário, e surfar um pouco pela blogosfera onde deixo comentários aqui e ali, porque ninguém visitará o meu se eu não deixar comentários nos outros. É o materialismo dos dias de hoje, principalmente entre os urbanos, em que muitos nada dão, só trocam, se tiverem interesse nisso!
Creio ter feito aqui a confissão que me é exigida pelo carrasco. Mas se ainda restam dúvidas, não tenha receio de perguntar concretamente. Ah esquecia-me de falar numa dor no tornozelo direito por ter escorregado numa fraga e feito um pequeno entorse. Mas as papas de linhaça estão a fazer efeito e, dentro de dias, estará bom.
sábado, 22 de março de 2008
Quem sou?
Publicada por A. João Soares à(s) 18:38
Etiquetas: pastor de cabras, quem sou?
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19 comentários:
Excelente descrição. Não tive qualquer dúvida em reconhecê-lo no outro dia, quando fui colher plantas para classificar.
Uma vida invejável, A. João!
Sob todos os aspectos a mais invejável que tenho conhecido nos últimos tempos!
Um grande abraço a um sábio!
Luiz
Adorei a vida que leva bem demonstrativa que é nessa simplicidade que consegue ter a reflexão necessária e suficiente para melhor apreciar tudo o que o rodeia.A vida rural dá-nos essa possibilidade. Na cidade com todas as "mordomias" nela existentes, e talvez até por isso mesmo,deixamos de poder analizar a vida em toda a sua profundidade e dessa forma perdemos parte da sua realidade talvez a parte mais bela e mais sã dessa mesma vida.
Percebo bem o que disse pois também tenho um "casinhoto" no Alentejo onde me refugio quando estou cansado da vida que levo na cidade. É lá que o raciocinio aparece claro e simples longe de interesses que tanto o tolhem e o pervertem quando se vive na cidade.
Brotero,
Apareça mais vezes, para voltarmos a conversar. Aprendi muito consigo e penso que aprendeu algo com aquilo que eu lhe disse, que eu lhe descrevi das plantas que ouço crescer, que me contam as suas alegrias e tristezas, em função da falta de chuva, ou da chuva mais intensa, ou do frio ou do calor, ou do vento, ou da neve. A vida aqui não é monótona nem rotineira. Recorde-se do seu susto quando quase dos seus pés se levantou uma lebre, assustada pela sua presença, de um desconhecido.
Quando cá voltar, faça-me o subido favor de me trazer uma placa com 17 polegadas, porque estou a pensar passar a trazer comigo o portátil. Depois pago-lhe com uns quilos de queijo caseiro, daquele em que a mão da ASEA ainda não pôs o pé.
Não me traga aquela loira de que me falou. As cabras são muito gregárias e xenófobas, não gostando que se lhe juntem outras vindas de terras diferentes.
Um abraço
A. João Soares
Caro Amigo Luiz Santilli,
Bem haja pelas suas palavras tão simpáticas, vindas da cidade de S.Paulo, Brasil onde não é fácil imaginar esta vida de eremita.
O amigo é um dos casos que eu referi das minhas ligações através da Internet.
O meu contacto com as pessoas é quase exclusivamente através deste meio, a Internet, porque a minha solidão física não me dá oportunidade de conversar de viva voz com as pessoas, mas, como dizia no anúncio, em que participei, tenho muitos amigos por esse mundo além.
Não aprendo apenas com as minhas cabrinhas, mas com as ervas as plantas, as rochas, o vento as nuvens, a chuva, o calor do sol. Embora tenha rádio sempre ligado, por vezes tiro-lhe o som para ouvir as plantas crescer, para ouvir o som que elas me transmitem, das suas tristezas e alegrias, isto para não falar da minha amizade com os pássaros e outros animais que me fazem companhia ocasional.
Mas eu sei a vossa vida de correrias loucas nas cidades. Há tempos, um amigo ficou a tratar das cabrinhas para eu ir numa excursão da Junta de Freguesia a Fátima e a Lisboa e, nesta, vi uma estrangeira deitada num jardim a apanhar sol e com um rádio ao lado alimentado por uma pequena placa solar, o que me inspirou a adquirir uma, porque a grande do casebre já a tinha há mais tempo.
A permanente meditação sobre o que se passa na humanidade e na Natureza dá muita sabedoria, embora eu tenha a noção de que sou ainda muito ignorante, principalmente por não perceber os motivos que levam as pessoas das cidades a terem uma vida de escravatura ao relógio e a outras pressões desgastantes.
O conselho que posso dar-vos é que parem e pensem a sério naquilo que vale a pena, na comunhão com a Natureza, com o seu ritmo e na aceitação dos outros, porque todos somos diferentes.
Um abraço
A. João Soares
Anónimo,
Bem haja pelas suas palavras sábias. Só lhe falta ter a coragem de deixar de vez a cidade com todas as suas toxinas, químicas, físicas e psicológicas, e ir de vez para o campo. Já reparou como é agradável estender-se à sombra do alpendre a ouvir crescer a seara? Mas eu aqui tenho a vantagem de, na encosta pedregosa da Serra, poder ver longe, muito longe tanto quanto me permite o binóculo da imaginação que, ao som das notícias de Timor e do Zimbabwe, me transporta pelo mundo, sem as burocracias das fronteiras.
Abraço
A. João Soares
Meu amigo,
Fiquei encantada com o que li, mas não admirada pois já me tinha apercebido que o João é uma pessoa de uma beleza interior muito grande.
Agora entendo de onde vem grande parte dessa beleza: é da natureza bela em que está inserido e da qual respira e bebe todos os dias.
Eu também acredito que “(...) é na gente humilde dos rurais que encontramos os cérebros mais produtivos em pensamentos, simples na sua formulação, mas ricos de saber e senso prático.(...)”
Obrigada por ser meu amigo e enriquecer o meu conhecimento com aquilo que escreve.
Muitos beijos com admiração e amizade
Alexandra Caracol
Cara Amiga Alexandra,
Não só aqui na Serra, em contacto íntimo e permanente com a Natureza, e com o mundo através do rádio e da Internet, mas também, como é o seu caso, com a música e os seus efeitos na mente humana, desenvolvemos a nossa sensibilidade para encarar a vida com sã filosofia.
O verdadeiro sábio é o que consegue interpretar os pequenos pormenores do ambiente em que vive, ao ponto de pouco se espantar com as ocorrências que parecem estranhas às pessoas vulgares. Tudo é simples na vida, ou pelo menos tudo pode ser simplificado de forma a ser compreendido e explicado. O contacto com a Natureza é um tónico revitalizante.
Gosto muito de contar com a Alexandra no grupo dos amigos mais interessantes, que fazem observações de muito nível.
Beijos de amizade
A. João Soares
Excelente texto!! Adorei! Uma resposta bem dada...beijos.
Querida Paula,
Isto merecia um texto em verso, um hino à natureza, mas falta-me o estro que tens abundância. Até na capacidade de versejar a distribuição não é equitativa. As injustiças sociais são um mal genético!!!
Beijos
A. João Soares
Meu caro,
Sempre ouvi dizer que a inveja é uma coisa feia mas, confesso, invejo esse seu modo simples, e tão ligado à natureza, pelo qual vai regendo a sua vida nesse paraíso que é a Serra da Estrela.
Um abraço,
João Gonçalves
João Gonçalves (perfil não disponível), provavelmente mais uma máscara a juntar a muitas outras do mesmo actor!!! Eu nunca uso máscara!
Também gostaria de levar a vida saudável, simples e sábia da personagem deste texto.
Saudações, com um sorriso
A. João Soares
Caro amigo João,
Estou estupefacta...não fazia a menor ideia do seu dia e dia, incrivelmente invejável, pelo menos para mim, acredite solenemente.
E eu a falar que vivia no campo...que vergonha, eu vivo numa vila linda e já tive galinhas, patos, gansos,coelhos, garnisés, fracas, periquitos, um cão Serra da Estrela (o Groo que desapareceu há anos), e agora tenho, tão somente, 2 gatos.
Eu imaginava o João na capital, bem instalado e rodeado de amigos intelectualmente muito interessantes com os quais mantinha longas conversas, sobretudo sobre política.
Não estou nada desiludida, pelo contrário, estou encantada com a pessoa que descobri nesta sua belíssima descrição.
Espero que as papas de linhaça já tenham curado esse problema no joelho.
Fiquei fã do seu Blog, voltarei.
Beijinhos
Fernanda Ferreira
Querida Ná,
Bem haja pela sua visita a este espaço. Ainda bem que gostou. Eu sabia que ia gostar e, por isso, lhe enviei o link.
Certamente leu o que escrevi na resposta anterior ao seu comentário!
Não esperava por comentários tão interessantes e em tanta quantidade. O texto foi escrito «sobre os joelhos» à laia de diário de donzela enclausurada na liberdade da Natureza. Parece que saiu bem e as pessoas amigas disso deixaram aqui a prova da sua amizade.
Para pensar sobre as realidades do mundo não é obrigatório estar entre as muralhas da cidade. Quem tem ligação à Internet está em boas ligações com tudo e todos em qualquer parte do planeta.
Beijos
João
O HOMEM e SENHOR João Soares é “simplesmente” UM VERDADEIRO SER, INTEGRO e INTEIRO!
Um abraço LIVRE e de LIBERDADE do amigo ao inteiro dispor.
OBRIGADO POR SER ASSIM !
José Manuel Pires
http://jose-pires-um-ser-livre.blogspot.com/
Caro José,
Para que não me chamem mentiroso, quero realçar uma frase do início do texto:
«Se quer saber o que faço e penso, vou tentar descrever o dia-a-dia do meu intelecto, no mundo sem poluição em que me instalei, pelo menos mentalmente.»
adoro a simplicidade, a natureza, a vida sem labirintos evitáveis, sem rodriguinhos, sem intenções ocultas.
Muito obrigado pela simpatia que o leva a dizer coisas exageradas em que não quero acreditar para não entrar em vaidades patológicas.
Um abraço
João
Só imagens
Amigo João Soares:
As vaidades patológicas ficam no mundo da poluição de que nos libertamos ( e… aqui deixe-me incluir ) SINTO/SEI que jamais nos afectarão !
Para si e aqui entre nós… basta uma palavra tão simples e tão profunda:
" NAMASTÊ ”
Zé Pires
Caro José,
Vim novamente aqui, à cubata das cabras, para que os visitantes menos curiosos não fiquem de boca aberta perante este seu cumprimento >«namastê»; também me curvo de mãos juntas perante a sua consciência de dever de cidadania, liberdade, responsabilidade e simplicidade. Esta palavra indiana faz pensar no muito que a Índia se tem desenvolvido no campo da ciência e da tecnologia, o que a leva a dentro em breve poder ombrear com as maiores potências mundiais, apesar de algumas zonas de grande pobreza, em lenta recuperação.
Namatê.
João
Sempre Jovens
Caro AMIGO João:
As suas palavras são fortes e tocantes.
Como diz um amigo meu ( Roop Verma ) :
“ Tu és o Universo assim como uma parte do Universo.
Tu és o Tu Oceano e ao mesmo tempo uma gota no Oceano.
Larga o controle. O Oceano sabe onde te levar ! “
NÓS DEIXAMOS O OCEANO LEVAR-NOS sem nos conspurcar e… SOMOS LIVRES !
Por isso :
TUDO QUE HÁ/É DE MELHOR E MAIS SUPERIOR EM MIM, CUMPRIMENTA/SAÚDA TUDO QUE HÁ/É MELHOR E MAIS ALTO HÁ EM SI.
O AMIGO Zé
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