O artigo de Manuel Maria Carrilho que se transcreve, analisa com nível universitário, a situação actual e realça alguns tópicos já aqui focados em «diversas oportunidades. O ano que agora se iniciou, vai exigir de todos os portugueses responsabilidades de decisão e acção com a finalidade de cooperar na saída da crise, com a certeza de que quem esteve na sua causa e desenvolvimento não tem condições anímicas nem técnicas para fazer parte da solução. Em eleições e outros actos formais bem como em acções espontâneas a que se seja chamado, há que ter sempre presente que é preciso mudança, é indispensável ir além de malabarismos paliativos e encontrar estruturas que beneficiem o futuro dos nossos filhos e netos. O artigo merece uma leitura muito atenta.
Malabarismos sem fim
Diário de Notícias. 06-102011. Por Manuel Maria Carrilho
A ideia-chave para que em 2011 se comece a sair do impasse em que o País e a Europa se encontram é só uma: não será com as pessoas, nem com as instituições, nem sobretudo com as ideias que nos conduziram à crise que conseguiremos sair dela.
Parece uma ideia simples, óbvia - e é. E é também uma ideia que os acontecimentos destes dois últimos anos reforçaram todos os dias. E, no entanto, ela parece quase não ter consequências, aumentando assim o abismo entre a nossa experiência quotidiana do mundo e tudo aquilo que os responsáveis políticos e os media constantemente dizem dele.
Com efeito, os dois últimos anos revelaram, tanto no plano nacional como internacional, uma invulgar incapacidade de fazer frente à crise. Em ambos os planos se pretendeu convencer as pessoas de que ela decorreu "apenas" do mau uso da financeirização da economia, que todos os seus erros e excessos foram pontuais, que talvez aqui ou ali se justificasse um pouco mais de regulamentação (quanto à supervisão, mais tarde se veria), que nada punha em causa o essencial do rumo seguido na última década, que a retoma estava sempre ao virar da próxima esquina, ou da seguinte....
Infelizmente, o Governo português comungou até ao limite deste obtuso estado de espírito. Mas rapidamente se percebeu que tudo era conversa fiada. E que nunca como agora a economia tinha estado sob o garrote de uma especulação tão descontrolada, às mãos de uma finança que tinha entretanto, sob diversas formas, conquistado os comandos do mundo.
Os dois últimos anos transformaram-se assim numa duríssima lição para aqueles que, ingenuamente, imaginaram que com a crise tinha chegado o momento de todos os regressos: do regresso da política a um lugar decisivo na vida das nações. Do regresso do Estado às suas essenciais funções de soberania, de regulação e de supervisão. Do regresso da economia a uma vida livre dos delírios especulativos e da pressão de lucros instantâneos.
Todos, ou quase todos, à direita e à esquerda, se descobriram então subitamente keynesianos, sem perceberem que o keynesianismo não é uma tábua de salvação a que se recorra conforme o aperto das circunstâncias. Mas uma visão original que, num contexto muito específico, conseguiu dar uma resposta inovadora e eficaz à crise do capitalismo. E o que hoje, numa situação que é bem diferente, tem faltado é precisamente essa capacidade.
Isto para já não lembrar um outro ponto, absolutamente central: é que o tão referido "intervencionismo" defendido por J. M. Keynes consistia numa intervenção dos poderes públicos contra a lógica cega, ou míope, dos mercados, feita em nome do bem comum e da sociedade. E não, como os keynesianos de última hora parecem pensar, numa intervenção conduzida em nome dos mercados, contra a sociedade e os seus valores.
Por tudo isto não surpreende que, depois de tantos relançamentos nos últimos dois anos, a financeirização do mundo tenha prosseguido. E prosseguido continuando a subjugar as economias aos seus caprichos mais inverosímeis, numa genial série de golpes que acabaram por fazer sempre das suas enormes fraquezas forças temíveis.
É assim que entramos em 2011. E, além disso, com sinais cada vez mais claros de uma guerra das moedas de efeitos imprevisíveis. Com uma inquietante contínua subida do custo das matérias-primas (que foi de 25% nos últimos seis meses) e com o petróleo a ultrapassar os 95 dólares. Com um G20 que pouco mais promete do que um exercício declamatório, este ano sob a batuta de um N. Sarkozy afogueado pela sua agenda interna.
A nível europeu, os impasses agravam-se, o bloqueio político parece total, as tensões da moeda única vão aumentando e a divergência das diversas trajectórias económicas vai-se acentuando, deixando como única via a dos recursos "caso a caso". Nenhum dos problemas fundamentais da União Europeia foi resolvido, e nada indica que o sejam este ano. Estamos praticamente na mesma situação de há um ano, na verdade só mudou o nome dos países sob pressão: a prová-lo, Portugal pagou ontem juros seis vezes superiores ao que pagou há um ano, para colocar 500 milhões de euros de dívida em obrigações do Tesouro.
Continuamos assim bloqueados pelas ideias que nos conduziram à crise, governados por aquilo que um economista australiano, John Quiggin, inspiradamente designou como uma economia de mortos-vivos. Isto é, uma economia dominada por ideias cuja falência vai sobrevivendo à prova dos factos. E perante isto os poderes públicos, em vez de reagirem, vão-se entregando a malabarismos sem fim, numa inédita confissão de impotência que já não escapa a ninguém.
Todos gostávamos de ver abrir-se um novo ciclo, neste começo de ano. Mas assim isto vai correr mal, muito mal. É com este realismo que Portugal deve decidir o que fazer. E de uma coisa estou certo: vai haver de facto muito para decidir em 2011.
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