Fogos florestais existem há poucas décadas
Nasci numa aldeia da Beira Alta, na zona do pinhal, e vivi lá até quase aos dezanove anos. Tinha os olhos postos na Natureza durante a maior parte do dia (só para me deslocar entre a casa e o liceu, a pé, demorava hora e meia de manhã e outro tanto à tarde). No pinhal podiam assar-se castanhas ou sardinhas ou qualquer grelhado sem preocupações de atear incêndios. Nem sabíamos o que isso era e não me lembro de ver por lá um carro de bombeiros.
Não estou a mentir, nem sequer a fantasiar. Como era possível? A explicação é fácil. O terreno do pinhal estava limpo, sem material combustível. E nunca ouvi alguém dizer que ia limpar o pinhal. Não havia a preocupação de limpar o chão do pinhal, não havia a intenção de evitar fogos florestais. Simplesmente, eles não tinham possibilidade de ocorrer porque isso resultava como efeito secundário de outra actividade fundamental.
Em vales onde hoje cresce mato diverso, desde silvas a giestas e outra flora, nessa época fazia-se agricultura que servia de alimento às pessoas e ao gado. Essa agricultura necessitava de fertilizantes que, tradicionalmente, eram de origem biológica com maior participação do estrume das camas do gado e de pátios ou lixeiras. Para isso, o mato do pinhal era cuidadosamente roçado uma vez por ano e amontoado em local abrigado dos ventos onde ficava a curtir com a chuva e outra água que fosse oportuno. Isso era um factor da hoje chamada prevenção de incêndios. Outro factor era a esgalha dos pinheiros que consistia em libertá-los dos ramos inferiores, já secos que iam servir para alimentar a lareira da cozinha e que melhoravam a qualidade da madeira do tronco que recuperaria do nó. Eram também cortados alguns ramos não secos que eram aproveitados como estacas para as videiras, para o feijão, para as ervilhas etc. Também, duas vezes por ano era apanhada a caruma que caía no chão nas estações de verão e outono, a qual tinha um destino mais ou menos semelhante ao dos produtos da roça.
Deste circuito fechado nascia a prevenção de incêndios sem se pensar nela. Mas as coisas mudaram, a agricultura passou a fazer uso de adubos químicos, depois as pessoas deixaram a agricultura e passaram a trabalhar em profissões mais limpas, deixou de haver bois para os transportes, a charrua e o arado. E o chão dos pinhais passou a ser uma selva impenetrável difícil de atravessar pelos rezineiros e começou a surgir a praga de que nestes últimos dias muito se tem falado.
Os teóricos começaram a dizer que os proprietários eram obrigados a limpar as suas matas e até criaram fábricas de biomassa, que eram alimentadas pelos produtos da limpeza das matas. Houve uma em Mortágua que durou poucos meses ou anos. Como podia o dono dos pinhais pagar a limpeza e, depois, o transporte para a fábrica da biomassa? E esta teria margem para financiar essas despesas dos seus fornecedores? O problema é complexo e ainda não foi encontrada solução viável, como se vê nos próprios parques naturais, propriedade pública, onde o fogo tem exercido a sua soberania.
E, assim, fala-se mais de combate aos incêndios que na sua prevenção. Mas o combate pode ser feito precocemente sem causar grandes estragos. Um amigo mostrou-me a sua tese de mestrado em que defende a implantação de uma malha de sensores de temperatura que cobre toda uma área a proteger, de forma a que qualquer fósforo seja detectado por três sensores que, automaticamente, transmitem a uma central de bombeiros o local exacto onde acaba de ser aceso o fósforo e basta lá enviar um jipe com um balde água (se a demora for grande será necessário um autotanque), para parar ali mesmo o incêndio, impedindo a sua propagação a grandes áreas.
Esperemos que as tecnologias vençam a ambição dos fornecedores de materiais de utilização e de consumo nos combates a este flagelo que, por um lado causa desgraça a muita gente mas, por outro, contribui para o enriquecimento de alguns.
António João Soares, em 8 de Agosto de 2016
3 comentários:
As imagens que se vêem são pura e simplesmente dantescas :(
Muito bom saber como era há poucos anos. Faz todo o sentido. Tem de se viver com a natureza, aproveitar o que ela dá porque nada é apenas lixo. E o foco tem de estar na prevenção, não do combate. Embora saber o que fazer nessas alturas é uma formação essencial, tanto para quem os combate como para a população em geral, que desconhece os procedimentos adequados em caso de necessidade de abandonar a habitação.
Este país é estranho nesse sentido. A prevenção diz que se tem de fazer as limpezas dos terrenos. Mas descobri faz algum tempo situações extremas. De pessoas que limparam o próprio terreno de que são proprietárias e as autoridades multaram-no por o fazer. E existem outros casos em que a pessoa põe-se a limpar para prevenir, e é multada! Isto não faz sentido.
Há uns tempos queixei-me do mato que se encontra por toda a volta na cidade onde moro. Capim com metro e meio de altura! É responsabilidade da câmara a limpeza, suponho, mas nada é feito. Depois lá cortaram--- mas só uma parte! Quando atravessei a estrada para o outro lado a surpresa foi total quando vi o mato imenso. Semanas depois aquilo ardeu. E o lixo? Coisas atiradas pelas pessoas, trazidas pelo vento, desde garrafas, a plásticos a embalagens... NINGUÉM LIMPA. E estou a falar de LISBOA.
Nós cidadãos, até podiamos fazer isso.... Mas para tal não se pagariam impostos, não existiria uma câmara, uma junta nem pessoas com essa obrigatoriedade nas descrições de funções a desempenhar.
Há pessoas esclarecidas que analisam o problema nas circunstâncias actuais e já foi publicado um plano que devia ter entrado em funcionamento, bem observado e ajustado se necessário a pormenores da realidade vigente. Tem custos e gera algumas dificuldades, mas tudo isso constitui uma percentagem mínima dos sacrifícios e danos causados pelos fogos. FALTA CONSCIÊNCIA e capacidade, coragem, nos governantes que se deixam subordinar a interesses particulares de fornecedores de equipamentos e de consumo para o combate. E nisso têm o apoio de pessoas altamente colocadas no topo dos bombeiros e da protecção civil que estão enredadas em tais interesses.
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