Transcrição da
Alocução proferida pelo Coronel e escritor David Martelo no IASFA/Porto, por ocasião do convívio de oficiais comemorativo do 41.º aniversário do 25 de Abril
A esperança portuguesa é militar, é sempre militar.
Francisco Rolão Preto
A celebração de mais um aniversário da Revolução de 25 de Abril pode constituir uma excelente oportunidade para uma serena reflexão sobre o estado da Democracia em Portugal. Um debate sobre este tema não é, de resto, oportuno exclusivamente em relação ao nosso país, uma vez que a crise internacional, iniciada em 2008, veio abalar profundamente a generalidade dos sistemas democráticos, nomeadamente na Velha Europa.
A degradação da actividade política e da ética que deve presidir à sua implementação tem sido motivo de grande desilusão, criando nos cidadãos a amarga ideia de que grande parte dos agentes políticos, em vez de constituírem exemplos de probidade e de civismo, são, pelo contrário, incumpridores de leis e de promessas eleitorais. Na política, à vista de todos, se fazem estágios e se ganham currículos que, depois, habilitam os que deviam servir o Estado a construir prósperas carreiras no sector privado. A acção da Justiça, por outro lado, tarda a convencer os cidadãos da sua eficácia, discrição e independência.
A conjunção da crise internacional com os erros próprios produziu uma legião de desempregados e espalhou pelos lares portugueses a dor, o desânimo e o medo. Sim, o medo!
Os sintomas de desordem vão-se acumulando.
Já não se trata da desordem nas ruas. É a desordem ao mais alto nível, na indizível liderança política e empresarial. Verdadeiras hecatombes financeiras são fabricadas em bancos e empresas de topo, a uma cadência de autêntico pesadelo. O país, atónito, assiste, pela televisão, ao desfilar de personalidades tidas como pertencentes à nata da nossa elite empresarial, quase todas elas preferindo passar por imbecis desmemoriados a correrem o risco de assumir, com coragem, as suas responsabilidades. No meio desta manifesta desordem, parece, por vezes, que os detentores do poder político pretendem, ainda, que os cidadãos achem normal e se acomodem passivamente às sucessivas anormalidades da governação.
Aqui e ali, ouvem-se vozes clamando que é necessário fazer um novo 25 de Abril.
Portugal teve, infelizmente, demasiadas intervenções militares na política, desde 1820. Algumas delas destinaram-se, sem dúvida, a pôr fim a algum tipo de “desordem”. Deve sublinhar-se que o Exército sentiu, por diversas vezes, esse chamamento dos Portugueses, mesmo quando em regime democrático. E esse chamamento foi visto, até, de forma regeneradora, tão fundo se tinha despenhado a esperança democrática.
Em 1890, após o Ultimatum britânico, Eça de Queiroz, em carta para Oliveira Martins, lançava uma ideia, um quase lamento, a propósito da esperança nas armas:
«É necessário um sabre, tendo ao lado um pensamento. Tu és capaz de ser o homem que pensa – mas onde está o homem que acutila?
Três décadas mais tarde, já nos últimos tempos da I República, era o próprio Fernando Pessoa que partilhava dessa visão redentora, quando afirmava:
«Nossas revoluções são, contudo, e em certo modo, um bom sintoma. São o sintoma de que temos consciência da fraude como fraude; e o princípio da verdade está no conhecimento do erro. Se, porém, rejeitando a fraude como fundamento de qualquer coisa, temos que apelar para a força para governar o país, a solução está em apelar clara e definitivamente para a força, em apelar para aquela força que possa ser consentânea com a tradição e a consecução da vida social. Temos de apelar para uma força que possua um carácter social, tradicional, e que por isso não seja ocasional e desintegrante. Há só uma força com esse carácter: é a Força Armada.»
E, noutra passagem, resumia, assim, a sua reflexão:
«Assim, em vez dos políticos de profissão, (a República) passará a governar pelo exército, que é, de espírito, o contrário deles...»
Tinha razão Fernando Pessoa na distinção que fazia entre o espírito de servir, dominante nas Forças Armadas, e o espírito de servir-se que prevalece em demasiados políticos profissionais. Neste aspecto, o julgamento de Pessoa mantém-se rigoroso e actual. Também não falta, para convergir com semelhante solução, o incompreensível menosprezo e as muitas desconsiderações a que os sucessivos governos têm votado os militares.
No entanto, é indispensável ter a lucidez necessária para reconhecer que a solução da força militar – por muitas razões de queixa que os cidadãos tenham do funcionamento do regime – é completamente desajustada nos nossos tempos. A simpatia internacional que o 25 de Abril suscitou há 41 anos, transformar-se-ia agora em condenação e boicote. Nessa hipótese, qualquer tentativa de exercício do poder imediatamente tropeçaria nas amarras que nos ligam à União Europeia e à União Monetária.
Mas fazer algo equivalente a um 25 de Abril é tarefa que está ao alcance de todos os Portugueses. Em cada ocasião que se realizem eleições, passa diante dos cidadãos uma oportunidade de mudança. Se há fenómeno que doa aos militares de Abril é, justamente, constatar a alta percentagem de abstenções verificadas nas idas às urnas, delapidando uma das armas mais importantes da liberdade que a revolução restituiu ao povo.
É desconsolador ouvir dizer que os partidos são todos a mesma coisa e que não vale a pena votar. Se pensarmos deste modo, jamais conseguiremos a salvação. Não há Democracia sem partidos políticos. Os partidos, mesmo quando falham na sua acção, podem regenerar- se, modificar-se ou desaparecer. Novos partidos se poderão formar.
Não, a esperança não é militar. É civil e está onde deve estar:nas mãos das Portuguesas e dos Portugueses.
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