sábado, 2 de novembro de 2019

DISCURSO DE KISHORE MAHBUBANI

Com a ONU activa, o Ocidente e todo o mundo podem ter um futuro pacífico e progressivo

Esta transcrição do discurso de Kishore Mahbubani foi publicado inicialmente no blog «Sempre Jovens», mas a quantidade de visitantes teve um tal aumento que decidi trazê-lo para aqui para agrado dos muitos visitantes que aqui costumem vir.


Discurso  por Kishore Mahbubani


Há uns 200 anos, Napoleão avisou: «Deixem a China dormir porque, quando ela acordar, vai abalar o mundo».


Apesar deste aviso antigo, o Ocidente decidiu adormecer, precisamente na altura em que a China e a Índia e o resto da Ásia, acordaram. Porque é que isto aconteceu?


Venho aqui falar deste grande mistério. O que é que eu quero dizer, quando digo que o Ocidente decidiu adormecer?


Refiro-me ao fracasso do Ocidente em reagir, de forma inteligente e cuidadosa, a um novo ambiente mundial que, obviamente, tem sido criado com o regresso da Ásia.


Enquanto amigo do Ocidente, sinto-me angustiado com isto, por isso o meu objectivo hoje é tentar ajudar o Ocidente.


Mas, primeiro, tenho de começar a história, falando de como o Ocidente acordou o resto do mundo.


Desde o ano um ao ano 1820, as duas maiores economias do mundo foram sempre as da China e da Índia. Só nos últimos 200 anos é que a Europa avançou, seguida pela América do Norte. Os últimos 200 anos da história mundial foram, pois, uma grande aberração histórica. Todas as aberrações chegam a um fim natural e é isso que estamos a ver.


Se observarmos o gráfico dois, vemos com que rapidez e pujança a China e a Índia estão a regressar. O grande problema é: Quem acordou a China e a Índia? A única resposta honesta a esta pergunta é que foi a civilização ocidental que fez isso.


Todos sabemos que o Ocidente foi o primeiro a modernizar-se com êxito, a transformar-se, a usar inicialmente o seu poder para colonizar e dominar o mundo.


Mas, com o tempo, partilhou os dons da sabedoria ocidental com o resto do mundo. Vou acrescentar que, pessoalmente, beneficiei com a partilha da sabedoria do Ocidente. Quando nasci, em Singapura, que, na altura, em 1948, era uma pobre colónia britânica, tal como três quartos da humanidade, nessa época. Vivi em extrema pobreza. No primeiro dia em que fui para a escola, aos seis anos, fui colocado num programa especial de alimentação porque, tecnicamente, fui considerado malnutrido. Como veem, agora estou muito bem nutrido.


Mas a melhor coisa que me deram foi o ensino ocidental. Como, pessoalmente, fiz este percurso da pobreza do terceiro mundo para uma existência confortável da classe média, posso falar com grande convicção sobre o impacto da sabedoria Ocidental e a partilha da sabedoria do Ocidente com o mundo. Um dom em especial que o Ocidente partilhou foi o ato de raciocinar.


O raciocínio não foi inventado pelo Ocidente. é inerente a todas as culturas e a todas as civilizações. Amartya Sen descreveu como o raciocínio está profundamente embebido na civilização indiana. Mas também não há dúvida de que foi o Ocidente que desenvolveu a arte do raciocínio a um nível muito mais elevado. Através da Revolução Científica, do Iluminismo, da Revolução Industrial, o Ocidente elevou-o grandemente e, de modo igualmente importante, usou-o, aplicou-o para resolver muitos importantes problemas práticos.


Depois, o Ocidente partilhou esta arte do raciocínio com o resto do mundo. Posso dizer-vos que isso levou àquilo a que chamamos as revoluções silenciosas.


Enquanto asiático, posso descrever como essas revoluções silenciosas transformaram a Ásia.


A primeira revolução foi a económica. A principal razão por que tantas economias asiáticas, incluindo as sociedades comunistas da China e do Vietname, têm funcionado tão espectacularmente bem no desenvolvimento económico, é porque finalmente perceberam, absorveram e implementaram as economias de mercado livre — um presente do Ocidente.


Adam Smith tinha razão. Se deixarmos os mercados decidirem, a produtividade aumenta. O segundo presente foi psicológico. Também aqui posso falar por experiência pessoal. Quando eu era jovem, a minha mãe e a geração dela acreditavam que a vida era determinada pelo destino. Não podíamos fazer nada quanto a isso. A minha geração e a geração dos asiáticos depois de mim, acreditam que podemos ser responsáveis e podemos melhorar a nossa vida.


Isto pode explicar, por exemplo, o pico de empreendedorismo que vemos actualmente por toda a Ásia. Se viajarmos hoje pela Ásia, também veremos os resultados da terceira revolução, a revolução da boa governação. Como resultado da boa governação, se viajarem pela Ásia, verão melhores cuidados de saúde, melhor ensino, melhores infraestruturas, melhores políticas públicas. É um mundo diferente. Ora bem, depois de transformar o mundo através da partilha da sabedoria ocidental com o resto do mundo, a resposta lógica e racional do Ocidente devia ter sido dizer: "Temos de nos ajustar e adaptar a este novo mundo".


Em vez disso, o Ocidente optou por dormir. Porque é que isso aconteceu? Eu creio que aconteceu porque o Ocidente ficou distraído com dois importantes acontecimentos:

O primeiro acontecimento foi o fim da Guerra Fria. Sim, o fim da Guerra Fria foi uma grande vitória. O Ocidente derrotou a poderosa União Soviética, sem disparar um tiro. Espantoso!
Mas, quando temos uma grande vitória como esta, também leva à arrogância e à sobranceria. Esta sobranceria foi bem captada num conhecido ensaio de Francis Fukuyama, chamado "O Fim da História". Fukuyama tentava transmitir uma mensagem muito sofisticada mas tudo o que o Ocidente captou desse ensaio foi que nós, as democracias liberais tínhamos triunfado. Não tínhamos de mudar, não tínhamos de nos adaptar, o resto do mundo é que tinha de mudar e de se adaptar.

Infelizmente, tal como um ópio perigoso, este ensaio fez muitos estragos no cérebro do Ocidente, porque pô-lo a dormir exactamente na altura em que a China e a Índia estavam a acordar. e o Ocidente não se ajustou nem se adaptou.


O segundo acontecimento importante foi o 11 de Setembro que ocorreu em 2001. Como sabemos, o 11/set causou um grande choque e dor. Pessoalmente, vivi esse choque e dor porque estava em Manhattan quando o 11/set ocorreu. O 11/set também gerou muita raiva, e, nesta raiva, os EUA decidiram invadir o Afeganistão e, posteriormente, o Iraque.

Infelizmente, em parte, como resultado desta raiva, o Ocidente não reparou noutro acontecimento significativo que ocorreu também em 2001. A China juntou-se a Organizações Comerciais Mundiais.

Quando injectamos, subitamente, 900 milhões de novos trabalhadores no sistema capitalista mundial, isso leva naturalmente ao que o economista Joseph Schumpeter chamou "destruição criativa". Os trabalhadores ocidentais perderam os seus postos de trabalho, viram as suas receitas a estagnar. Nitidamente as pessoas tinham de pensar em novas políticas competitivas, os trabalhadores precisavam de novas formações, precisavam de novas competências. Nada disso foi feito.


Em parte, como resultado disso, os EUA tornaram-se na única grande sociedade desenvolvida em que o rendimento médio dos 50% de baixou— sim, 50% —o rendimento médio baixou, num período de 30 anos, entre 1980 e 2010, Em parte, como resultado disso, chegámos, em 2016, à eleição de Donald Trump que explorou a raiva das classes trabalhadoras, que são predominantemente brancas.


Isso também contribuiu para o aumento do populismo na Europa. Não podemos deixar de pensar como esse populismo podia ter sido evitado se o Ocidente não tivesse andado distraído com o fim da Guerra Fria e do 11/set.


Mas a grande questão que hoje enfrentamos é esta: Será tarde demais? O Ocidente perdeu tudo? A minha resposta é que não é tarde demais. É possível que o Ocidente recupere e volte em força. Usando a arte de raciocínio do Ocidente, eu recomendo que o Ocidente adopte uma nova estratégia de "três M": minimalista, multilateral e maquiavélica.


Porquê minimalista? Apesar de ter acabado o domínio do Ocidente, o Ocidente continua a intervir e a interferir nos assuntos de muitas outras sociedades. Isso é insensato. Está a gerar raiva e ressentimento, especialmente nas sociedades islâmicas. Também está a esgotar os recursos e o espírito das sociedades ocidentais. Eu sei que o mundo islâmico está a ter dificuldade em se modernizar. Vai ter de encontrar o seu caminho, mas é mais provável fazer isso se o deixarem fazer sozinho. Eu posso dizer, com alguma convicção porque sou duma região, do sudeste asiático, que tem quase tantos muçulmanos como o mundo árabe, são 266 milhões de muçulmanos. O sudeste asiático é um dos continentes mais diversificados do planeta, porque também temos 146 milhões de cristãos, 149 milhões de budistas — budistas Mahayana e budistas Hinayana —e também temos milhões de taoístas, de confucionistas e de hindus e até comunistas. Outrora conhecido por "os Balcãs da Ásia", o sudeste asiático devia estar a sofrer hoje um choque de civilizações. Em vez disso, vemos que o sudeste asiático é um dos cantos do planeta mais pacíficos e mais prósperos com a segunda organização regional,multilateral de maior êxito, a ASEAN. Nitidamente, o minimalismo pode funcionar.


O Ocidente devia tentar. Mas reconheço que o minimalismo, só por si, não pode resolver todos os problemas. Há problemas difíceis que têm de ser tratados: a Al-Qaeda, o ISIS. Mantêm-se ameaças perigosas. Têm de ser encontrados, têm de ser destruídos. A questão é: Será sensato que o Ocidente que representa 12% da população mundial, — sim, só 12% — combata essas ameaças sozinho? Ou deve lutar com os restantes 88% da população mundial? A resposta lógica e racional é que devemos trabalhar com os restantes 88%. Onde é que vamos se quisermos arranjar o apoio da humanidade? Só há um local: as Nações Unidas. Eu já fui embaixador nas Nações Unidas, duas vezes. Talvez por isso, possa estar um pouco influenciado, mas posso dizer-vos que trabalhar com a ONU pode levar ao êxito. Porque é que foi um êxito a primeira guerra iraquiana, travada pelo presidente George H. W. Bush? Enquanto que a segunda guerra iraquiana, travada pelo filho dele, o presidente George W. Bush, foi um fracasso? Uma razão principal é que o Bush pai foi às Nações Unidas para obter o apoio da comunidade global, antes de travar a guerra no Iraque


Assim, o multilateralismo funciona. Há outra razão por que temos de trabalhar com a ONU. O mundo está a encolher. Estamos a tornar-nos numa aldeia global pequena e interdependente. Todas as aldeias precisam de conselhos de aldeia. O único conselho mundial que temos, como disse Kofi Annan, o falecido Secretário-Geral da ONU, é a ONU. Enquanto analista geopolítico, sei muito bem que, muitas vezes, considera-se uma ingenuidade trabalhar com a ONU.


Agora, vou injectar o meu ponto maquiavélico. Maquiavel é uma figura muito denegrida no Ocidente, mas o filósofo liberal Isaiah Berlin recordou-nos que o objectivo de Maquiavel era promover a virtude, não o mal. Então qual é o ponto de Maquiavel? É este: qual será a melhor forma para o Ocidente restringir as novas potências emergentes? A resposta é: A melhor resposta para as restringir é através de regras multilaterais e normas multilaterais, instituições multilaterais e processos multilaterais.


Agora, vou terminar com uma importante mensagem final. Como amigo de longa data do Ocidente, tenho plena consciência de como as sociedades ocidentais se tornaram pessimistas. Muita gente no Ocidente não acredita que tem um grande futuro à sua frente, nem que os seus filhos terão uma vida melhor. Portanto, por favor, não receiem o futuro ou o resto do mundo. Posso dizer com alguma convicção o porque, enquanto hindu sindi, sinto uma ligação cultural direta com culturas diversas da sociedade e com sociedades desde o Teerão a Tóquio.


Mais de metade da humanidade vive neste espaço. Portanto, com esta ligação cultural directa, posso dizer com grande convicção que, se o Ocidente optar por adoptar uma estratégia mais sábia de ser minimalista, multilateral e maquiavélica, o resto do mundo ficará contente por trabalhar com o Ocidente. Portanto, um grande futuro perfila-se para a humanidade. Vamos adoptá-la em conjunto.


Obrigado


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