Há dias um comentário no post «Jovem flautista com futuro prometedor» referia a dificuldade que um jovem filho de pobres não pode concretizar a sua vocação cultural e artística, desde que esta exija meios exteriores às escolas do Estado. E mesmo que os seus objectivos se enquadrem na estrutura concreta, o estímulo é praticamente inexistente, como refere Jorge Nogueira citado no post «Aluno português brilhou em competição no Japão», quando fala das dificuldades que teve de vencer.
Por acaso, ontem almocei com o amigo António, já aqui referido algumas vezes, e por saber das dificuldades com que se debateu, abordei com ele este tema. Embora tivesse nascido no início do ano, o pai no Outubro anterior a completar 7 anos, tentou matriculá-lo na primária, mas a professora recusou-se a abrir a excepção, mesmo tratando-se de poucos dias, e disse que apenas poderia entrar no ano seguinte. Foram 12 meses em que o pai, usando livros escolares emprestados por um vizinho, foi ensinando o António e quando este entrou na escola já sabia tanto como os da segunda classe.
Foi utilizado pela professora para ajudar os que sabiam menos, e assim continuou até ao fim da quarta classe, porque compreendia as coisas rapidamente e a professora servia-se dele como um auxiliar precioso, para ensinar as classes mais atrasadas, enquanto ela repisava com os da sua classe. Os pais, dadas as referências da professora às suas qualidades e gosto pelos livros, tencionavam matriculá-lo na Escola Comercial e Industrial da cidade, distante de seis quilómetros da sua casa, à semelhança de dois rapazes mais velhos, um e dois anos.
Mas a professora e o marido, também professor numa aldeia vizinha, pressionaram os pais a levá-lo para o liceu e que se estes não quisessem, seriam eles (professores) que lhe pagariam as despesas do primeiro ano e, depois, os pais que decidissem. O professor conhecia o António porque os alunos que estavam a preparar-se para os exames iam lá para casa fazer exercícios depois das aulas e ele observava como cada um se desempenhava das dificuldades.
Os pais, honrados e briosos, apesar das dificuldades de rendimentos, não aceitaram tal ajuda e decidiram seguir tais conselhos e suportar as despesas inerentes, com sacrifícios que podiam ter sido maiores do que se veio a concretizar. O António aceitou sem hesitar percorrer todos os dias a pé, os seis quilómetros de manhã e à tarde, evitando os custos de pensão na cidade. Nunca faltava e, pelo caminho, com chuva, neve, vento ou sol forte, ia recapitulando de cabeça as lições, e recebia todos os anos um diploma de assiduidade por nunca ter faltado ou sequer chegado atrasado. De manhã, procurava estar meia hora antes para cobrir qualquer pequeno atraso a que fosse obrigado.
Mas além da poupança em pensão, houve o incentivo escolar traduzido na isenção de propinas, devida às boas classificações, sempre no Quadro de Honra, em todos os anos e uma bolsa de Estudo no 6º ano, por no exame do 5º ter sido o melhor classificado de todos os examinandos. Uma parte da bolsa serviu para comprar uma bicicleta que facilitou as deslocações entre a casa e o liceu. Também teve apoio da Mocidade Portuguesa que lhe forneceu alguns livros de estudo, dos quais se orgulha de ainda ter e usar os dicionários de Português-Inglês e Inglês-Português.
Conta com orgulho que suportou bem a diferença de vida dele em relação aos colegas: enquanto perdia mais de uma hora em viagem à tarde para regressar a casa, os outros ou iam a explicações (ele nunca soube o que isso era) ou brincavam. Criou sentido da responsabilidade, qualidades de trabalho, capacidade para procurar vencer as dificuldades, sem subserviência a professores nem arrogância para os colegas, amigo de ajudar e ensinar os mais fracos, ao ponto de se ter arriscado como me contou e aqui referi em «Sorte a mais dá azar!».
E ao voltar a referir-se o caso da flautista e do comentário, ele disse que há dias um general que foi colega dele no liceu, lhe recordou que os dois eram os mais pobres do liceu, mas o pai do agora general tinha posses para o hospedar na cidade. Sem dúvida que as posses dos pais são um pilar importante, mas além disso é preciso vocação, dedicação ao estudo, com sentido das responsabilidades, boa organização e gestão do emprego do tempo e persistência no esforço.
Obrigado António por esta conversa muito interessante e espero que o teu sentido de humildade me desculpe ter aqui publicado este resumo, pouco, claro para não ser extenso.
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sexta-feira, 17 de setembro de 2010
O António, «de pequenino torceu o pepino»
Publicada por A. João Soares à(s) 16:00
Etiquetas: António, dedicação, sentido de responsabilidade
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