Há alto interesse em que a maior parte dos portugueses leiam calmamente a entrevista do historiador José Mattoso, 79 anos, publicada hoje no PÚBLICO
José Mattoso: o "governo do povo" favorece quem já tem o poder
29.04.2012 - 18:59 Por António Marujo
O historiador manifesta esperança na bondade humana e diz que a vocação monástica continua a ser o seu mais forte apelo interior. José Mattoso acaba de publicar um livro de ensaios cívicos, criticando a acção política e o poder financeiro.
José Mattoso acaba de publicar o livro Levantar o Céu - Os Labirintos da Sabedoria (ed. Temas e Debates/Círculo de Leitores), onde recolhe textos de intervenção cívica e espiritual. É como que uma síntese da vida do historiador que, aos 79 anos, não desiste de um olhar lúcido sobre a contemporaneidade. Pretexto para esta entrevista.
PÚBLICO: No seu livro, confessa o seu cepticismo perante a realidade, relacionando-o também com a desilusão que sobreveio às esperanças da década de 1960. A posição céptica é a mais saudável hoje em dia?
José Mattoso: Não, de todo. A posição céptica é resultado de um certo realismo e lucidez. Quando se vêem as estatísticas, o aumento do lixo nuclear, das consequências dos aditivos na indústria alimentar, tudo o que preocupa um cidadão normal, não se vê como se possa sair daí. As coisas têm repercussões tais que só a reunião de poderes universais pode alterar a direcção em que se vai. As estatísticas são implacáveis e seria cegueira não ver isso.
Não encarar essa realidade...
Sim, mas esse é um ponto de vista racional. Do ponto de vista da fé, nada disso é fatal. Podemos ter uma atitude política, tentar intervir na realidade. Mas, se não formos conduzidos pela fé, o realismo leva-nos a desistir. O cristão tem possibilidade de se livrar dessa fatalidade na sua relação com o céu. Na metáfora que utilizo, levantar o céu, é trazer a terra ao encontro do céu.
Aí, não estamos sós. Temos a intervenção de Deus, temos a fé na redenção, no perdão dos pecados, no valor do sofrimento, na abnegação, na bondade... Temos também a fé na cultura, na inspiração extraordinária dos grandes artistas, que alcançam níveis fantásticos de captação da bondade, da beleza do mundo. E temos a renovação constante da vida: se há um incêndio numa mata, vemos daí a pouco aparecerem as flores, as ervas. A vida não desiste de se reproduzir, de envolver a realidade.
Fala da atitude política, mas hoje ela está subjugada ao financeiro. Estamos perante uma usurpação da democracia?
Não domino suficientemente a terminologia política para poder dizer se se trata de uma usurpação. Sei que o Estado tem mostrado a sua impotência perante os abusos do poder financeiro e que o sistema democrático não resolve os problemas actuais. Ninguém acredita no discurso político, nem mesmo quem o pronuncia. Os interesses corporativos viciam a democracia. O "governo do povo" não defende os direitos dos pobres e excluídos. Favorece quem já tem poder.
Impressiona a evocação que faz da tragédia ambiental. Está ameaçada a relação da humanidade com a natureza?
Creio que sim. A escassez de petróleo e de água, de todas as fontes de energia, mostra que é preciso um investimento enorme. A grande ameaça é a confiança que o homem põe na técnica. A ciência dá um poder enorme sobre a realidade. Uma parte dos cientistas atribui uma grande capacidade de resolução dos problemas à técnica. Mas esta, muitas vezes, adopta soluções que depois se revelam extremamente dispendiosas. Somos incapazes de imaginar o mundo sem energia, sem movimento, sem Internet. As comunicações tornaram-se indispensáveis. Mas quais são os subprodutos?... A técnica não dá o poder de resolver os efeitos secundários.
Há anos, Lourdes Pintasilgo presidiu a uma comissão que elaborou o relatório "Cuidar o Futuro". Estamos a pôr em causa as futuras gerações?
Sim, é de tal modo uma evidência que espanta que não se veja isso. Todavia, o imediatismo na resolução dos problemas não deixa adoptar soluções de longo prazo. Não há nenhum político que se atreva a propor que se deixe de ter electricidade uma hora ou duas por dia, porque perderia as eleições...
É preciso recuperar as ideologias e os ideais, perdidos nas últimas décadas?
Tenho pouca confiança nas ideologias, nos ideais sim. Os ideais propõem-nos um horizonte que nunca conseguiremos alcançar: o ideal da pureza, da beleza, da abnegação - nunca lá chegaremos suficientemente. Jesus Cristo utiliza expressões extremas, porque são ideais: se te baterem numa face, dá a outra; devemos fazer o bem aos nossos inimigos. Isso é um ideal, ninguém chegará lá, porque é um horizonte sem fim, de tal modo exigente, que há sempre uma aproximação e a esperança de fazer mais.
E as ideologias?
Os ideais são indispensáveis para o homem melhorar a sociedade em que vive. As ideologias, não sei de nenhuma que tivesse resolvido os problemas da humanidade a uma escala suficiente: marxista, socialista, conservadora... Até as próprias religiões, como sistemas de organização da vida. Elas traçam uma série de regras e, se as regras são absolutas, tornam-se como o homem que se submete [à lei e não a lei] para o homem; e se são instituições permissivas, não atingem os objectivos.
Apareceu um abaixo-assinado de 400 padres na Áustria. Há ali uma série de problemas concretos que a instituição-Igreja não aceita e, todavia, do ponto de vista evangélico, seria natural haver uma certa maleabilidade. Na Idade Média havia um subentendimento de outra forma de organizar a vida humana do ponto de vista moral e espiritual: as regras fundamentais eram apresentadas em toda a sua exigência, mas a prática era muito mais maleável e não considerava que houvesse casos sem solução.
É nesse sentido que devemos ler a metáfora "levantar o céu"?
Não tanto. Quando falo em levantar o céu, é todo o universo, são realidades espirituais, a arte, mesmo a que não tem nada que ver com a religião, porque representa uma forma de melhorar o ser. O ser é sempre parcialmente realizado. Ao falar na beleza, não se pressupõe que ela não possa conter também alguma coisa de fealdade. Os antagonismos, fundamento do pensamento ocidental, em que se baseia a visão da realidade, são muitas vezes parciais.
Por isso vai ao Oriente buscar a ideia da harmonização dos contrários?
Exactamente. O Ocidente precisava de mais maleabilidade e da consciência de que a realização do ser é tão pluriforme que ninguém pode abarcar essa totalidade. Não é por processos de oposição que caminharemos para o pleno do ser humano.
Há toda uma tradição da cultura ocidental, em que predomina a racionalização, os opostos: preto e branco, bem e mal... Na Idade Média, aparentemente, também prevalece esse tom radical nos grandes pregadores. A mulher, para São Pedro Damião, é a encarnação do demónio. O leitor deixa-se enganar por essa aparência de intolerância mas, se estudar o que aconteceu na realidade, verifica que há uma concepção pragmática da realidade, muito diferente da doutrina.
Constrói o seu livro à base do triângulo sabedoria, razão e fé. É possível a coexistência destes três vértices?
Creio que sim, contanto que a razão não prevaleça sobre a sabedoria e a fé. Mas a razão é fundamental. A formulação teológica do século XII, de São Tomás de Aquino e da teologia escolástica, é a demonstração mais categórica da capacidade de conciliar a fé com a razão. Isso representa um progresso enorme na compreensão da mensagem evangélica. Portanto, não há uma oposição inconciliável. O pietismo, uma devoção sentimental que é por vezes a expressão de um culto popular, precisa da reflexão racional para se tornar aceitável.
Em Portugal, não se cultivou suficientemente a teologia, na sua expressão plena. Não há uma tradição de estudos teológicos suficientemente válidos do ponto de vista racional, para poder responder a um anticlericalismo primário e cego que existiu em Portugal no século XIX e grande parte do século XX.
Já referiu a bondade e escreve que enquanto homens e mulheres se amarem, ainda há um resto de esperança. A bondade é a sua esperança?
Não só. Radica nela, na medida em que esse é um efeito de Jesus Cristo ter assumido a natureza humana e representar no mundo a bondade de Deus. Ele é o redentor, o salvador. Mas eu não queria insistir no aspecto dogmático, antes na forma prática como Jesus Cristo mostra o que deve ser o homem na sua expressão mais profunda.
A bondade pode ser praticada numa concepção laical, laicista mesmo. Não precisa de ter nenhum sobrenatural por trás. Mas o cristão tem essa propensão, se a cultivar. E tem o exemplo de Jesus Cristo que leva isso a um extremo que o homem, só por si, não alcança.
A bondade pode ser uma chave de uma ética comum entre crentes e não-crentes?
Sim. Pode haver colaboração entre um crente e um não-crente na vivência da bondade.
Temos dificuldades com a supressão do tempo, porque ele traz o envelhecimento e a morte, e da liberdade, porque ela nos permite escolher entre o bem e a violência?
Quando falamos do ser, pensamos em qualquer coisa fora do tempo. Mas a realização do ser é no tempo, não pode ser toda de uma vez e tem que ser com todos os indivíduos que constituem a humanidade. A realização do ser homem faz-se na totalidade da vivência humana no tempo.
E implica aceitar o sofrimento e a morte?
Sim, e também a consideração entre o bem e o mal.
Que é a questão da liberdade.
Sim. A realidade do ser humano implica o bem e o mal, como se conciliam, como entram em relação um com o outro... Os livros que têm aparecido a negar a existência de Deus dizem que, se Deus existisse, teria que intervir para que a maldade humana não prevalecesse. A oposição inconciliável entre o bem e o mal leva a negar a existência de Deus.
Qualquer pessoa que considere as coisas em termos de justiça e verifique o que se passa no mundo ou a crueldade no Holocausto, diz: como é que Deus permite isto, como é que estes homens fazem isto e quem sofre são as vítimas?
Para mim também é difícil aceitar esta realidade. Talvez seja numa visão de totalidade, em que o bem não pode existir sem o mal, que se pode aceitar e encontrar uma relação com o ser do homem. O ser implica também o ser mau.
A dificuldade maior das nossas sociedades é enfrentar o envelhecimento e a morte?
Sim, mas no envelhecimento há qualquer coisa mais própria da nossa época do que de outras. Não havia os progressos da medicina que permitem retardar o envelhecimento. Também há toda uma cultura da juventude que desvaloriza a velhice e as incapacidades que ela traz. Todavia, de um ponto de vista estatístico, a diminuição da natalidade não traz senão uma percentagem cada vez maior de velhos e doentes. Como se resolve tudo isso? O pensamento oriental se calhar é mais sábio, porque tem consciência do papel do velho...
Tal como o africano...
... talvez porque a percentagem de velhos é menor do que no Ocidente. Para o homem de fé, é preciso aprofundar esta noção da sabedoria, que se baseia numa experiência vivida e na meditação da palavra como fundadora da própria realidade, de autenticidade dos conceitos e dos valores.
Não se zanga quando ouve, na praça pública, referências à Idade Média como a idade das trevas? Mesmo quando várias das tragédias evocadas, como a Inquisição, são posteriores...
Não acho que seja precisa uma atitude apologética, explicando que esse é um conceito primário e redutor. Foi refutado já tantas vezes e de forma tão clara que não vejo nisso grande problema. Pode acontecer é que seja apenas expressão de um primarismo cultural que é lamentável. Mas há mais qualquer coisa: o Liberalismo e, sobretudo, o Iluminismo é muito responsável pela inferiorização da Idade Média, por causa da noção de progresso. O Iluminismo procura a racionalização e o progresso e desvaloriza tudo o que seja intuitivo, tudo o que seja [do domínio do] jogo...
Dizia que a Idade Média era muito mais tolerante e diversificada, que o clero não era tão dogmático como mais tarde alguns missionários...
Não diria "muito mais" tolerante. Diria mais tolerante e menos dogmático. Isso resulta sobretudo da prática das instituições. A Igreja quis formatar o homem de uma certa maneira, impor-lhe um modo de comportamento demasiado rígido. Por exemplo, a confissão sacramental, que aparece no Concílio de Latrão em 1215, ou a regra de ir à missa uma vez por semana ou o matrimónio como sacramento... O clero começou a pensar que eram objectivos. Mas não são senão meios pedagógicos.
É verdade que a sociedade ocidental ganhou, do ponto de vista moral, com o matrimónio monogâmico. Mas, na prática, o concubinato era extremamente difundido. A Igreja conviveu com isso. Era preferível ter sido um pouco mais tolerante. A prática das visitas canónicas na região de Coimbra no século XVI era uma autêntica espionagem da vida privada das pessoas que levava a uma hipocrisia que não trouxe vantagem nenhuma em relação a uma certa tolerância medieval.
Tem evocado a sua convicção cristã, mas também expressa reservas em relação a aspectos institucionais do catolicismo. Como vê a Igreja institucional?
Poderia dizer, de forma quase brutal, que não me importaria de assinar a carta dos 400 padres austríacos [a pedir reformas na Igreja e o fim do celibato obrigatório, entre outras coisas]. Mas não quero ser provocador. Relaciono isso com a sondagem que diz que há menos católicos e uma proliferação cada vez maior de grupos religiosos ou pseudo-religiosos. A evolução social é implacável. Que estratégia a Igreja deveria seguir, para não perder o lugar que chegou a alcançar? Penso que é sobretudo na vivência do Evangelho, na autenticidade da vida cristã. Não de uma forma pietista, mas de forma autêntica, vivencial e esclarecida. Há uma grande quantidade de questões que resultam da ignorância teológica pura e simples.
É uma atitude exemplar, a de frei Bento Domingues, seguro nas suas posições doutrinais e todavia extremamente maleável na sua apreciação da realidade actual.
Quando ganhou o Prémio Pessoa, estava numa aldeia em Arganil. Agora vive no interior do distrito de Aveiro. Já passou por uma aldeia no Alentejo, por Timor... A vocação de monge continua a tentá-lo?
Não diria a tentar-me, diria a manifestar-se. Diria quase: a protestar contra todas as tarefas que tenho aceitado e das quais não me arrependo porque me parecia que era isso que eu devia fazer, na ocasião em que me foram propostas. Mas o meu apelo interior vai por aí, é um apelo primeiro, que permanece.
Agora queria que me deixassem em paz. Se calhar já é tarde. Os cartuxos só admitem vocações até aos 40 anos, já tenho o dobro, não sei se tenho capacidades de viver sozinho. Mas pelo menos queria, com a liberdade pessoal suficiente e sem imposição de tempo, dedicar-me à oração. Mais do que isso: dedicar-me a descobrir o valor da palavra, o autêntico significado da palavra, no sentido de linguagem, de expressão da realidade, no sentido de logos. Encontrar-me na meditação da palavra como expressão do mundo, da existência, da história, e descobrir-lhe um sentido.
Sente esse apelo mas, no livro, fala da cidade como símbolo da humanidade solidária. Na Idade Média, a cidade era o sítio onde as pessoas se protegiam da agressão do campo e hoje a cidade é a selva urbana...
Não oporia uma coisa e outra. Há uma tradição cristã que vê a cidade com uma dupla face: a Babilónia, o orgulho, o querer afrontar Deus na realização técnica. A outra metáfora é A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, a sociedade ordenada, com uma capacidade de organização que valorize o homem e permita a sua realização, a solidariedade, a conjugação das tarefas. Essa dupla face da cidade mantém-se toda a Idade Média. Na actualidade, poderíamos também ter as duas metáforas como modelo: Corbusier e outros arquitectos que pensaram as coisas em termos urbanísticos quereriam dar realidade à concepção de Santo Agostinho. Mas o que a realidade nos mostra é a megapolis, as cidades desenvolvidas quase sem limites, como São Paulo, Bombaim ou outras. E o homem perde o domínio, a sua capacidade de construir um lugar onde possa viver em toda as suas virtualidades, na solidariedade.
Imagem do Google
segunda-feira, 30 de abril de 2012
José Mattoso em entrevista
Publicada por A. João Soares à(s) 06:49
Etiquetas: José Mattoso
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